segunda-feira, outubro 29, 2018


A AMNÉSIA

O BANHO

UM ELEVADOR PARA O CÉU

O ÉDEN NÃO É ETERNO

O COLECIONADOR DE ESPIRITOS

 

 

 

1 AMNÉSIA

 

Matar o tempo é quase um passatempo nacional.

Fazê-lo nas enormes filas de trânsito em direcção à grande cidade é obrigatório.

Muitas vezes num simples pairar curioso, outras tentando adivinhar as vidas que ali se cruzam a cada instante.

O som altissimo do rádio mal deixa perceber as palavras com que Alice tenta comunicar com o marido. O carro é mais um de entre os muitos que me rodeiam. "Logo não te esqueças de ir mais cedo buscar o miúdo à ama." "O quê? "Alice nunca percebeu muito bem se o marido punha o rádio tão alto para ouvir música ou para não a ouvir a ela. Tantas horas de tantos cansaços vão aos poucos minando as pontes entre as pessoas e a partir de algum tempo a capacidade de sobreviver é mais fácil sendo cada um por si do que num qualquer colectivo asfixiante. Alice levanta-se todos os dias às cinco horas da manhã, arranja-se, trata do filho mais novo, prepara o pequeno almoço e quando tem tempo ainda dá uma pequena arrumação na casa. O marido esse fica na cama até ao limite possível e levanta-se quase sempre perto das seis horas. Às seis e um quarto, depois de acordar o filho mais velho e de lhe dar as últimas indicações saem de casa  rumo ao inferno. Primeiro a ama para deixar o filho, depois a estrada..."E antes de ires buscar o miúdo tens que ir buscar as análises. Não te esqueças, porque amanhã tenho que ir ao médico mostrar os resultados. "O grunhido/resposta do outro lado é mais que satisfatório, porque a mais das vezes a resposta é o silêncio senão um peremptório "cala-te que estou a ouvir as noticias. "Outra vez! Não entendo como é que estas pessoas aguentam isto todos os dias. Quilómetros e quilómetros de filas, horas e horas todos os dias. Mas como é que as pessoas aguentam? Pergunto-me, mas no mesmo instante sinto-me idiota com a pergunta. Como aguentam? Da mesma maneira que eu há tanto tempo a fazer todos os dias a mesma pergunta. "Pronto mais um avariado. Estúpido. Devia haver multas para quem deixa avariar os carros. Os prejuízos que causa a tanta gente uma simples avaria. Devia ser proibido. "Todos os dias milhares de pessoas se amaldiçoam umas às outras sem o minimo conhecimento de causa das circunstâncias exactas em que acontece cada coisa.Os imprevistos, o imponderável, a situação psicológica, etc.,etc.. Face a cada situação concreta todos são lestos a apontar causas, culpados, soluções. "Filho da puta! Chega para lá essa merda. Pensas que a estrada é só tua? Olha aquele a ver se me 'come'. Tenta que já vez o que te acontece! "Francisco tem voo marcado para as dez horas, mas pelo sim pelo não resolveu sair de casa às sete horas. Há uma hora que está na fila, mas a experiência de todos os dias diz-lhe que vai conseguir chegar a horas."A partir dali começa a andar melhor. Às nove horas estou lá."Mais que uma afirmação a frase dita em surdina para si mesmo é mais um auto-conforto que uma certeza. Ou, pelo menos, é uma certeza só para os próximos minutos.Se daqui a quinze minutos não estiver onde mentalmente acha que deve estar, então tem de começar a procurar uma nova certeza. "Deve ser um acidente.Logo que passe o acidente, isto começa a andar."E assim sucessivamente, num adiamento continuado mas necessário para manter o equilibrio.

Para António, com uma vida vazia, perdido num emprego cinzentão, sempre igual, os problemas são os mesmos, mas outros.Com a adrenalina sempre no minimo, só na confusão do trânsito consegue fazê-la subir.Não por estar estupida e ordeiramente numa fila infindável e lenta, mas por estar permanentemente a tentar furá-la.Cada lugar conseguido à custa de uma qualquer esperteza é uma vitória.Correr riscos e ultrapassar os limites permitidos são as suas pequenas lutas do dia. Infelizmente as únicas.Coleciona multas como se fossem troféus e faz gala disso.Quando, por qualquer motivo não há confusão, chega demasiado cedo e como desconhece outras maneiras de matar o tempo fica simplesmente dentro do carro... a matar o tempo!

Todos vêem tudo de acordo com a sua visão egocêntrica da realidade.Os problemas de cada um deixam de existir para passar a ser todos os problemas.Não são só os de cada um, mas sim, os de cada um multiplicados por todos.Se um tem pressa acha que todos deviam ter pressa; se anda devagar todos deviam andar devagar; se está deprimido todos deviam entender isso e adaptar-se; se está alegre todos deviam estar alegres.

Fazer parte do mesmo atropelo diário transforma as pessoas solidárias da pior maneira possível, ou seja, segundo a visão unilateral de cada um.

Sou um espectador atento da luta do dia a dia que se trava em cada instante  para tentar chegar o mais cedo possível à grande cidade.Uma atitude, um gesto ou um simples olhar são por vezes prenuncio de raivas mais profundas e quantas vezes simples escapes para lutas interiores mais complexas e sem solução.

Com tanto tempo só para mim, por vezes, não consigo evitar o assalto dos meus fantasmas: as ambições, os sonhos, os desejos mais secretos, as dúvidas, as angústias ou as certezas mais inabaláveis.Quando não tudo ao mesmo tempo.

Que algumas vezes iludo em inócuos exercicios mentais.Tentando, por exemplo, adivinhar os mundos dentro de cada mundo que é um carro; mundos que não consigo imaginar senão por entre vidros embaciados.

"Aquele tão contente logo de manhã.Será a mulher?Hum!.Deve ser a amante que vai buscar todos os dias ao sitio do costume."

"E aquele!Que carranca.Parece que nem conhece a mulher que vai ao lado.Deve ser a legitima."

"Aquela vai com ar de fim do mundo.Terá alguma doença?Será que tem Sida?"

“E aqueles!Que lindo!Quanta ternura conseguem extravasar!Aquilo é mesmo amor!Que inveja!"

Agora reparo.Isto hoje está mesmo mau.Já aqui estou parado para aí há quinze minutos.Não anda de vez.

Desligo o carro e deixo-me embalar. Aos poucos, perdido em mil anseios volto ao meu sonho; é um sonho de todas as noites que depois trago para o dia e tranporto comigo em cada instante...dois corpos  entrelaçados numa comunhão perfeita de corpo e espirito frente a uma lareira sempre acesa, rodeados por milhares de velas cintilantes...e....mas...que zumbido tão estranho...

Primeiro é uma espécie de zumbido intenso a aumentar, aumentar, aumentar, até deflagrar num estrondo enorme, como se mil sóis tivessem rebentado sobre o universo.Um instante apenas!Mas tão fulminante que pareceu durar uma eternidade.

Um instante impensável em que aconteceu uma daquelas coisas que não podem acontecer nunca.

Vivemos tão agarrados às nossas verdades inabaláveis, às nossas certezas irrefutáveis que quando são postas em causa a primeira reacção é de incredulidade. Quer em relação às coisas do dia a dia, quer mesmo em relação às mais intimas, àquelas que só nós é que sabemos que existem.Mas, que fazer quando  outra realidade  tão forte e tão óbvia se impoe sem remissões?

A verdade é que naquele instante todas as pessoas deixaram de saber conduzir.Literalmente. Todas. Todas as faculdades se mantiveram intactas, a inteligência, a capacidade de agir, mesmo o conhecimento dos sinais de transito, à excepção da capacidade de conduzir.E bastaram mais alguns instantes para que se instalasse o caos e a destruição.

A primeira reacção simultânea foi de "cuidado!", "olha aquele!", sem reparar que o outro era cada um de nós.Logo de seguida (se a expressão se pode usar, dado que foi tudo tão instantâneo!), incredulidade, espanto, terror!

No instante em que perceberam ter perdido o controle dos carros, os mais atentos tentaram fazer alguma coisa.Travar, por exemplo.Só que não sabem como fazê-lo. Uns, por pura sorte, conseguiram ensaiar uma travagem, mas outros aceleraram, fizeram pisca-pisca, meteram velocidades despropositadas, guinaram para qualquer lado, ou simplesmente apitaram.Os que, por sorte, tinham conseguido tomar a atitude correcta foram de imediato apanhados na onda de todos os outros de nada lhes valendo a sorte inicial.

O que aconteceu de seguida é indescritível.

Todos os que tinham espaço livre à frente, seguiram em frente.Onde quer que isso fosse: outro carro, a parede, o descampado, o rio,etc.,etc..Os que os seguiam foram parando em tudo o que estava à frente, noutros carros, nas protecções laterais das estradas, onde quer que fosse.Se de tragédia não se tratasse poder-se-ia dizer que o mergulho colectivo no rio de centenas de carros foi único e espectacular.

Pouco mais de vinte segundos foram suficientes para transformar tudo em redor num enorme cemitério de pessoas e carros. Os gritos dos sobreviventes a uma só voz provocaram um coro terrível, capaz por si só de arrepiar o mais insensível. O sangue misturado com o combustível derramado em muitos casos a arder criou no ar um cheiro intenso de... de...de inferno. È. Se existe inferno, então aqui, neste momento é o inferno.

Um dos carros que consigo ver a voar em direcção ao rio é o de Alice.Afinal o marido já não vai ter que ir buscar análises nenhumas.E muito menos buscar o miudo à ama.

O Francisco também não vai apanhar nenhum avião esta manhã.Está com o rosto desfigurado do lado de fora do vidro da frente do carro.

A amante sorridente não vai ser obrigada a explicar ao marido porque é que ia naquele carro com aquele homem em vez de ir na carreira 118 que naquela manhã uma vez mais fazia a ligação à grande cidade.A carreira 118 que, quase por milagre escapou incólume à tragédia. Castigo divino para amores à margem das Suas leis?

O primeiro pedido de socorro foi recebido no serviço de emergência médica poucos segundos após o acidente. O paramédico que estava de prevenção correu célere para a viatura e de repente estancou atónito. Estava parado em frente à ambulância e não sabia o que fazer para a pôr em movimento.Ao fim de intenso esforço intelectual conseguiu pô-la a funcionar e arrancou veloz... contra a primeira parede que lhe apareceu à frente.

O que parecia ser um fenómeno localizado e circunscrito, era afinal geral.Ninguém sabia conduzir. Ninguém fazia a minima ideia de como utilizar os veiculos motorizados.Que fazer?Que decisões tomar sem poder contar com os imprescindiveis veiculos motorizados?

Reunido de emergência com os poucos elementos que foi possível reunir(só os que moravam perto e não se deslocavam de automóvel no instante da amnésia colectiva) o governo tentava tomar algumas medidas.Mas cada uma delas pressupunha a utilização de veiculos motorizados e tinha que ser de imediato posta de parte.Depois de muitas discussões foi decidida a única coisa que parecia razoável no momento, dado que todos os meios médicos móveis estavam dependentes de tais veículos : arranjar todos os animais de tracção possíveis e adaptá-los para puxar ambulâncias e outros veículos de emergência.

O primeiro veículo deste tipo saiu do hospital central seis horas depois da tragédia.Neste intervalo de tempo tinham morrido por falta de assistência milhares de pessoas, enquanto os gemidos de dor em toda a grande cidade se confundiam agora num só.O veículo saiu, mas não andou mais que umas poucas dezenas de metros.Logo à saída da primeira curva o trânsito estava bloquedo por carros acidentados.O veículo deu meia volta e tentou um percurso alternativo, mas a sorte foi a mesma.Tentou outra vez.E outra.E outra.Mas para onde quer que tentasse o cenário era sempre o mesmo.Carros e mais carros de encontro uns aos outros.E feridos.Muitos feridos.Então foi decidido esquecer o destino de origem e começar a tratar de imediato aqueles feridos.O mesmo fizeram todos os outros carros que entretanto tentaram sair de outros hospitais.E eram tantos os feridos que num ápice todos os meios médicos disponíveis se esgotaram nas zonas circundantes dos hospitais.

Ao principio da tarde ainda não era conhecida a verdadeira dimensão da tragédia, dado que cada zona mais ou menos restrita só tinha conhecimento da sua e da situação em que se encontrava

Passadas as primeiras horas de horror e estupefacção de imediato se iniciaram aquelas vagas que ninguém sabe como começam nem de onde vêem, mas que de imediato se generalizam.Primeiro as pilhagens.Na grande cidade a horda de excluidos que normalmente só é visivel na noite profunda a dormir onde calha viu de imediato maneira fácil de satisfazer as suas necessidades    sem dificuldades de maior.Os poucos agentes de autoridade que tentaram intervir foram mortos em poucos instantes.Em minoria em cada zona não podiam ser socorridos pelos colegas.Seis horas foi quanto bastou para que a lei e a ordem quase deixassem de existir.Ao fim do dia já existia mesmo uma outra lei e uma outra ordem.A que surgiu naturalmente da desordem.

Os pobres e ordeiros cidadãos sem a capa da autoridade a protegê-los tornaram-se em poucos instantes presa fácil daqueles que horas antes nem se atreveriam a dirigir-lhes a palavra; daqueles que em cada dia ignoravam ostensivamente e a quem quando lhes apetecia concediam o dom da esmola.É fácil prever quanta revolta existia em toda aquela gente, quão fácil foi a explosão de anos e anos de submissão, maus tratos, exclusão e aproveitamento.Primeiro desapareceu tudo o que estava dentro de muitos carros entretanto abandonados pelos donos.E esta foi a parte mais pacifica de todas.Depois começou uma lenta mas progressiva caminhada de inversão da ordem estabelecida.A operação mais rápida e espantosa consistiu na confirmação das moradas dos mortos pelos sem abrigo que, de imediato, ocuparam as casas.Situação que, em alguns casos, provocou novas mortes ou simplesmente novos desalojados.Quando os ocupantes chegaram às casas supostamente desabitadas depararam-se com pessoas idosas, inválidos e crianças e conforme a disposição do momento ou os puseram na rua ou  os mataram.Qualquer protesto era em vão.Protestar junto de quem?Chamar quem em auxilio?Ao fim de algum tempo as ruas estavam cheias de novos desalojados, mais bem vestidos é certo, mas também mais indefesos e com poucas possibilidades de sobrevivência.Com a inversão de valores a força dos fracos veio ao de cima, enquanto foi por demais evidente a fragilidade na luta pela sobrevivência da sociedade organizada e dependente (da policia, das regras, dos serviços, etc.etc.)

A seguir tratou-se de encher as despensas.As pilhagens que tinham começado logo após a tragédia aumentarama a cada instante até  transformarem a grande cidade e os arredores num enorme hiper-mercado onde valia tudo.Aqui aconteceu um fenómeno curioso revelador de quão ténue é a linha que separa a lei e a ordem da anarquia e da desordem.Os trabalhadores dos estabelecimentos comerciais pilhados que começaram por se opor aos assaltos (alguns foram mortos por isso!), à medida que a anarquia se instalava foram-se passando para o outro lado de modo que passado algum tempo estavam todos do mesmo lado.Funcionou em pleno a máxima "se não os podes vencer junta-te a eles"...

...súbito um novo zumbido começa a entrar nos meus ouvidos de tal maneira forte que quase me fere os timpanos.Um zumbido que,à semelhança do primeiro vai aumentando de intensidade, aumentando, aumentando, até se transformar num coro desafinado de ... de... buzinas.

  Acordo ao som estridente de buzinas e insultos.

À minha frente uma enorme  estrada vazia.

Atrás uma fila interminável de carros a buzinar.     

Sobressaltado e envergonhado retomo a marcha rumo à realidade sufocante e tantas vezes sem sentido.

 

 

2 BANHO

 

Acordava sempre duas vezes.

Quando acordava e quando acabava de tomar duche.

Aquele  dia não foi excepção e, acabado o duche retemperador, está prestes a acordar pela segunda vez.

Acaba de tirar o champô, pega na toalha e limpa-se seguindo o ritual subconsciente de todos os dias: primeiro a cara, depois as costas, o cabelo, os pés, de novo o cabelo, por fim o resto dos pés até sair do banheiro.

Todos os dias somos praticantes de mil e um rituais que a mais das vezes nos passam despercebidos.

Mas… porque estou a demorar tanto tempo a secar?

Parece que tenho a água agarrada ao corpo.

Esfrego mais um pouco o cabelo, limpo os pés de forma mais intensa… mas…o que é que se passa? Não consigo limpar-me…

“Oh! Mariana, esta está boa! Não consigo tirar  a água do corpo!”

“Não consegues? Limpa-te!”

“É o que estou a fazer, mas não consigo!”

“Não pode ser! Estás cada vez pior…”

Há coisas que acontecem sempre da mesma maneira, que têm uma sequência de tal modo lógica que se tornam impensáveis de qualquer outra forma.

Está frio, temos frio; está a chover molhamo-nos; travamos bruscamente somos atirados para a frente, etc., etc., etc.

Tomamos banho, pegamos na toalha,  limpamo-nos e secamos.

Até hoje!

“Estou pior o quê? Estou farto de me limpar e continuo tão molhado como quando saí do duche. Se não acreditas anda cá ver.”

Mariana não está com muita disposição para brincadeiras, mas mesmo assim, como quem não quer a coisa, aproxima-se da casa de banho e espreita por uma frecha da porta.

Ao princípio não nota nada de anormal, mas passado pouco tempo percebe que há alguma coisa que não está bem.

O marido está mesmo a limpar-se, mesmo com alguma brusquidão, mas a verdade é que o corpo continua molhado.

“Mas o que é que andaste a fazer para deitares tanta água? Estiveste a lavar-te por dentro ou quê?”

“Não brinques. Estou a começar a ficar preocupado.”

“Não estou a brincar.  Vá toma lá outra toalha e vais ver que te secas num instante.”

Obediente pega na toalha e repete os movimentos anteriores,  a principio com a sensação de estar a ter algum sucesso, mas cedo percebe que nada mudou.

“Não consigo. Continuo molhado!”

Os primeiros momentos são de incredulidade e o espanto. Impotência. Desorientação.

Fazer o quê?

“Anda  aqui um pouco para junto da janela que isso já passa.”

Aproxima-se da janela que por entre os cortinados deixa passar uns ténues raios de sol e espera. Espera mais um bocado. Ainda outro.

Não acontece nada.

Olham um para o outro procurando em vão  explicar o inexplicável.

O que é que podem fazer?

João começa a ficar com frio e coloca uma manta pelas costas, mas rapidamente  esta fica encharcada com água, o que faz aumentar ainda mais o desconforto.

“Não sei que fazer, estou a ficar com muito frio. Ajuda-me!”

“Como? O que é que queres que eu faça?”

“Sei lá. Faz qualquer coisa!”

“Temos que pedir ajuda. Vou ligar para o 112.”

“Está? É do 112? O que se passa é o seguinte…”

“E se se deixasse de brincadeiras? Não sabe
que enquanto estou a  perder tempo com brincadeiras pode haver alguém mesmo doente que não consegue aceder ao serviço?”

“Mas não estou a brincar!”

“Não está a brincar? Então está a fazer o quê? O seu marido tomou banho e não se consegue limpar? Brincadeira e estúpida! Vou ficar com o seu número e comunicar a quem de direito. Bom dia!”

“Espere, espere. Por favor não desligue. Não estou a brincar. Não sei o que se passa nem consigo qualquer explicação, mas a verdade é que o meu marido tomou duche e nunca mais conseguiu tirar a água do corpo, faça o que fizer. E o pior é que está a ficar cada vez com mais frio e já não sei que fazer.”

O apelo foi tão pungente que conseguiu convencer a pessoa do lado da central.

“Vou enviar uma equipa e para seu bem espero mesmo que não se trate de mais uma brincadeira.”

Quando a ambulância chegou com os paramédicos João fazia exercícios de ginástica de forma cada vez mais violenta, para fazer desaparecer o frio que aumentava a cada minuto que passava.

“Onde é que está o doente.”

“Aqui, aqui. Sou eu!”

“É você? E está a fazer ginástica?  Afinal o que é que se passa?”

“Não estou a fazer ginástica nenhuma! Estive a tomar banho e estou a tentar secar-me.”

“E porque é que não se limpa a uma toalha, como toda a gente?”

“Não percebe? Não me consigo limpar.Já quase há duas horas que tomei banho e não me consigo limpar!”

“Sabe que gozar com os serviços de emergência pode ter consequências graves?”

“Mas qual brincar, qual quê? Não vê que isto é muito grave? Estou a ficar gelado e se não me secar rapidamente vou acabar por morrer de hipotermia.”

Ainda hesitante e desconfiado o médico aproximou-se mais de João e constatou que de facto João estava todo molhado e parecia não haver qualquer alteração. Foi buscar uma toalha aos equipamentos e pediu-lhe que se limpasse à mesma.

Não foi preciso passar muito tempo para se aperceber do óbvio. Por mais que esfregasse o corpo continuava molhado sem a menor alteração.

Ante o insólito ficaram sem saber o que fazer.

“E agora? O que é que fazemos?”

Olharam uns para os outros incapazes de qualquer decisão.

“Precisamos pensar com muito cuidado, mas rapidamente. Acredito que seja uma situação nova para todos. Alguém tem alguma sugestão de aplicação imediata?”

 “Um secador. Vamos arranjar vários secadores e utilizá-los até evaporar toda a água.

“Boa ideia. Vamos tentar.”

“A senhora tem secadores em casa?”

“Tenho um!”

“Um não é suficiente. Vá á loja de electrodomésticos mais próximos e compre quatro secadores de cabelo, dos mais potentes que houver. Mas rápido porque o seu marido deve estar a ficar gelado”

“Não estou a ficar. Já estou!”

Nunca trinta minutos demoraram tanto a passar.

Logo que Mariana chegou com os secadores, cada um pegou num e foi uma azáfama a tentar secar o corpo de João. Mas passados os primeiros momentos de expectativa, logo foi visível que o resultado iria ser o do costume: João continuava molhado e cada vez com mais frio.

Incrédulos e impotentes olharam uns para os outros.

Fazer o quê?

Entretanto João sentia cada vez mais frio e começava a ter dificuldades em respirar.

Até que alguém teve mais uma ideia.

“Enquanto não encontramos uma solução definitiva temos de encontrar uma provisória, antes que o homem morra para aí de frio. Vamos encher uma  banheira com água bem quente e metê-lo lá dentro de para ver se conseguimos manter a temperatura normal.”

A banheira foi cheia de água bem quente e João colocado lá dentro.

Passado pouco tempo sentiu-se reconfortado e começou a respirar mais pausadamente.

Entretanto multiplicavam-se as consultas para tentar não só explicar o fenómeno, mas principalmente resolver o mesmo.

“Vamos pensar com calma. O que é que pode estar a provocar  isto? Alguém tem alguma ideia?”

Silêncio.

Ninguém fazia a mínima ideia!

Muitos silêncios adiante estavam exactamente no ponto onde tinham começado, isto é, em lado nenhum porque a lógica ali não fazia sentido.

Aquele era um fenómeno  para além de qualquer lógica.

Entretanto o conforto inicial de estar numa banheira de água quente começava a dissipar-se e mesmo assim João recomeçava a sentir o desconforto de estar molhado. Já não propriamente frio, mas desconfortavelmente molhado.

E começava a desesperar.

Então João acordou meio zonzo, com água quase até à boca.

Estava deitado na banheira, onde tinha adormecido.

Jurou solenemente a si mesmo que tinha sido a primeira e seria a última vez que substituía o duche pelo banho de imersão.

 

 

3 ELEVADOR PARA O CÉU

 

Apesar de um estatuto especial relativo a entradas e saídas João apanhava sempre à mesma hora o mesmo elevador para o local de trabalho. Não sabia bem porquê  , (ou talvez soubesse muito bem!).

Enquanto apregoava o contrário, João gostava mesmo era de rotinas. De rotinas e da Elisa que trabalhava no 5º andar  e que às vezes vinha vestida de uma maneira que fazia com que o seu indice de produtividade baixasse perigosamente e se limitasse pensar tesouros imaginários por baixo do seu vestido curto.Também havia  cor dos olhos. A expressão do olhar. Enfim havia um mundo que só se atrevia a imaginar.

Fosse pelo que fosse, ou simplesmente pela soma de todas as coisas a verdade é que entrava e saia do emprego sempre à mesma hora, ou seja quase sempre à hora a que entrava e saia a Elisa.

Coincidências cada um arranja as que lhe convêm.

Aquele era um dia igual aos outros  e nada fazia prever que as coisas se passassem de maneira diferente. E há hora do costume João e Elisa entraram no elevador.

Como todos os dias a fingir que não se viam, mas, como todos os dias a não perderem um gesto um do doutro até ao momento em que Elisa saia e dizia  com voz desfalecida “até logo”.

O que aconteceu a João naquele momento exacto nunca ficou muito bem explicado. E muito menos o que aconteceu dentro de si.

Aliás, de forma concreta, ainda hoje não sabe bem o que aconteceu. Como é que Elisa saiu? Como é que o elevador voltou a andar?

Um lado tem sempre um oposto, mas em cada momento para cada um de nós só um lado existe.

Em  raros momentos da vida do cosmos é possível a alguém ver os dois lados e nesse instante pode mudar de lado sem se aperceber disso. Foi o que aconteceu naquele momento. Enquanto Elisa saia normalmente do elevador, João deu um salto temporal e embarcou no Elevador do Céu.

Ninguém sabe porque lhe chamam assim, como ninguém sabe se exixte mesmo. O que toda a gente sabe é que desde sempre, desde que o homem é homem, algumas almas conseguiram apanhar o elevador e foram para o paraíso, enquanto uma grande maioria não conseguia e ia não se sabe para onde; toda a gente lhe chamava Inferno, mas ninguém sabia o que era nem mesmo se existia.

Então como é que sabiam? Sabendo!

João.

Ocupado a tentar ver Elisa sentiu de repente uma luz semelhante a um flash de mil sóis que  o obrigou a fechar os olhos.

Quando os abriu estava sozinho no elevador.

“Estranho não vi a Elisa sair. Bem, vamos à vida.”

Carregou no botão do 7º andar e o elevador arrancou como todos os dias. Mas não parou como todos os dias. Antes pelo contrário. Impulsionado por uma força invisível ganhou velocidade supersónica e só parou ao fim de uma hora e de um incontável número de andares.

Quando João acordou de uma espécie de sono hipnótico e olhou para o relogio não quis aceditar.

Tinha passado uma hora

Atónito esfregou os olhos para confirmar se estava acordado e perceber onde se encontrava. Não tinha duvida que era o mesmo elevador, mas, ao mesmo tempo sabia que era outro. Se dúvidas houvesse o dourado da porta ao seu lado esquerdo era suficiente para as esclarecer. Porque a porta anteriormente era do lado direito e igual ao resto do elevador. Mas o desenho erótico que alguém fizera no lado esquerdo do tecto mantinha-se lá. Era ainda o velho elevador, mas também já era o novo elevador.

Mas o que significava tudo isto?

Procurava  desesperadamente um botão salvador quando a porta dourada  desapareceu e o elevador foi invadido por uma espécie de névoa de um branco imaculado que aos poucos se foi dissipando deixado emergir uma figura magnifica, toda vestida de branco, com uma imaculada barba branca. Então mesmo sem falar, a voz da figura fez­-se ouvir dentro da sua cabeça.

“Foi dificil a jornada?”

“O quê? Onde  é que eu estou?”

“Calma, calma! Em breve tudo será explicado. Mas primeiro precisa descansar porque foi sujeito a um esforço muito grande.”  

“Mas o que é que está  a acontecer?  Como é que vim aqui parar?”

 “Não se lembra de  nenhum episódio importante na sua vida recente?

“Lembro-me de ter entrado no elevador para ir trabalhar e...”

“...e?”

Então, como se estivessem a lavá-lo por dentro, as ideias começam a misturar-se numa massa uniforme até serem uma só ideia – LIMPEZA E PUREZA!

Ao fazê-lo passou a ser capaz de falar mentalmente e, por isso, a ser  incapaz de mentir

“Continue. Tente lembrar-se. De qualquer pormenor ”

Incapaz de articular palavra olhou em redor como que a pedir socorro e então, por detràs de uma espécie de escaparate, viu a primeira página de um conhecido jornal. Mas era um jornal especial. Eram três exemplares e tinham os três a imagem de João a ocupar quase toda a página, mas o que chamou a sua atenção não foi isso. Foi o  facto de os três jornais, todos do mesmo dia, terem legendas diferentes.

O primeiro dizia:

 Joao Alberto conhecido  Financeiro da nossa praça foi vitima de um acidente e ficou ferido sem gravidade.

O segundo dizia:      

João Alberto conhecido financeiro da nossa praça foi vitima de um acidente e ficou ferido com gravidade.

O terceiro dizia:

João Alberto conhecido financeiro da nossa praça foi vitima de um acidente e faleceu ao ser trasnsportado para o hospital.

O que é que aquilo queria dizer? Ele era só um! Espera! Claro! De imediato não percebeu todo o sentido, mas sentiu que, de algum modo havia ali uma escolha a ser feita.

Sempre pensara que na morte não havia escolha, mas parece que não era assim  tão simples e no fim  tinha de ser ele a decidir o seu destino.

Porquê? Isso não era tarefa de Deus? Quem era o velho de barbas brancas  à porta do elevador?

Então uma nova porta se abriu e viu-se perante uma assembleia de velhos de barbas brancas. Todos sentados numa espécie de anfiteatro onde pareciam estar sentados, apesar de náo se verem quaisquer cadeiras.

Em frente uma enorme cadeira vazia.

Sentiu dentro de si, dentro do seu cérebro limpo de qualquer lixo, que lhe  fizeram sinal para que se sentasse.

Sentiu-se intimidado.

Sentou-se.

Ouviu dentro de si a primeira pergunta.

“Sabe o que está aqui a fazer?”

“Não!”

 “Nós somos os Anjos da Guarda e estamos aqui para o ajudar a decidir da sua vida. A sua e a de  todos os indecisos.”

“Então por isso é que eram os três jornais!”

“Claro!”

“E que é que vocês fazem”

“Nós estamos aqui para aconselhar. Quando a hora chegar a decisão será sempre vossa, mas vocês são seres indecisos (fazeis parte de uma Criação que teve muitos defeitos), mas para os encaminharmos para o caminho certo precisamos que estejais convictos do que quereis. Só assim vos podemos ajudar. Porque senão decidem com clareza podem ficar encalhados milhares de anos...”

Uma luz ao fundo aumenta de tamanho enquanto parece aproximar-se lentamente. De repente um novo flash e...acorda na cama do hospital. Aos poucos recobra a consciencia por completo.

Elisa.

No dia seguinte Elisa subiu sozinha no elevador.

“Como é que estará o meu companheiro do elevador? Ontem quando desmaiou pareceu não ficar muito bem. AInda tão novo e teve um ataque de coração daquela maneira. Será que devia ir vê-lo ao hospital? É verdade que nunca tivemos qualquer conversa para além dos cumprimentos habituais. É verdade, mas sinto que os nossos silencios se tornaram sentidos. E não só para mim. Logo vou vê-lo ao hospital.”

 Sem saber bem porquê João passou o dia a pensar em Elisa. E a lembrar-se do sonho enquanto esteve inconsciente. Gostava que ela o visitasse no hospital. Mas porque havia de o fazer se durante tantas viagens se limitaram aos cumprimentos de circunstância? Ou foi mais do que isso. Agora que se recorda que depois da limpeza a unica coisa que ficou claramente dentro da sua cabeça foi a imagem de Elisa.

Dentro de si alguém aconselhou. O futuro está cheio de impossiveis atingíveis. Só é preciso não desistir nunca.

Então a porta da enfermaria abriu-se lentamente e uma Elisa hesitante aproximou-se da sua cama. Não disse nada. Agarrou-lhe primeiro na mão, depois aproximou-se mais e beijou-o na boca de forma absoluta e única. João correspondeu como se aquele beijo lhe devolvesse a vida que tinha perdido e já pensava que não existia.

Era o principio de algo novo intenso, total, único e sem reservas.

Por instinto João olhou para cima e ainda conseguiu ver de fugida o rosto do seu Anjo da Guarda, que sem dúvida estava a sorrir de contentamento.

Tinha menos um encalhado às portas do Céu!

                                            
4 MORTE POR EQUIVOCO

O que chamamos as voltas da vida, a mais das vezes são a própria vida. E mesmo que assim não seja, as voltas serão sempre as culpadas pelas reviravoltas que a vida dá. 

Se somos levados a lugares ou situações impensáveis, a alguns que nem nos sonhos mais inverosíveis pensariamos ir algum dia, aí não temos dúvidas em culpar as voltas da vida.

E a verdade é que com ou sem culpa as voltas da vida tanto nos podem levar  ao pico agreste do monte distante como ao fundo do vale inacessível, ao hotel das mil e uma noites ou  ao pôr de sol único, ao meio da destruidora tempestade ou à tasca de aspecto duvidoso. Quase sempre  fazendo-nos crer que nós é que lá fomos e que não fomos levados por elas.

Tal como as voltas do rio  que tantas vezes parece ter escolhido o caminho menos provável, também as voltas da vida nos levam por onde querem enquanto  nos  deixam acreditar  em cada momento somos nós que estamos  a escolher o nosso próprio caminho.

Na sua suprema ingenuidade o homem está convencido que é ele quem manda e que todas as coisas  são fruto da sua acção consciente e criteriosa. Deixemo-lo acreditar que sim, mas nós sabemos que são as votas da vida as responsáveis.  

A António levaram-no um dia a um café de aspecto duvidoso. Não gostou de nada no café, mas isso não impediu que em pouco tempo se tornasse cliente habitual de um bem abastecido pequeno almoço.  Nos primeiros tempos não associou o aspecto estranho do copo do café a qualquer problema de higiene, porque simplesmente não o  associou a nada, até ao dia em que, pela porta entreaberta o vislumbre da cozinha ecoou dentro de si como um alerta suficientemente forte para perceber que havia ali um problema de higiene.

O normal seria não mais lá voltar, mas a normalidade, que não era de todo uma das suas qualidades  nada teve que ver com a decisão tomada. Durante algum tempo observou com cuidado os outros utilizadores tendo chegado à conclusão normal que todos utilizam a chávena com a asa voltada para a direita. Foi assim que decidiu continuar a frequentar o mesmo espaço passando a utilizar sempre a chávena com a asa voltada para a esquerda.

Quantas vezes nos interrogamos porque é que fazemos as coisas de uma maneira e não de outra? A mais das vezes nem nos apercebemos da forma como as fazemos e muito menos que as fazemos sempre da mesma maneira num processo que julgamos inconsciente, mas que é quase sempre fruto de uma causa, de algo que em determinada fase do  percurso fez com que passasse a ser feita daquela forma e não de outra qualquer. Sim, é verdade que tem  a importância que tem, a das pequenas coisas da vida, mas que são as  grandes coisas da vida  senão a soma das pequenas? Não encontraremos aqui explicações para tantas coisas de nós que não conseguimos explicar?    O que a maior parte das vezes não conseguimos é estabelecer a relação de causa e efeito, é saber muito mais    tarde quando uma qualquer contingência nos coloca no alto da ponte prontos a saltar para o abismo, de que coisas é feita aquela que naquele instante nos tenta impelir  com tanta determinação. Não sabemos e  bem no intimo não queremos saber.

Há coisas que só acontecem aos outros e dessas, as boas ainda pode ser que um dia nos venham a acontecer a nós, mas as outras, as más, essas decerto nunca nos acontecem, pelo menos até ao dia em que acontecem.

André pertencia a essa  espécie intocável. Vivia todas as coisas de forma libertária com a certeza interior que nada o afectava; cada nova coisa da sua vida feita de muitas coisas era encarada com a sobranceria de quem tudo é capaz e com o sentimento forte de que nada é suficientemente forte para merecer uma paragem. Encarava a vida como um todo e utizava todos os bens que o rodeavam de forma descartável. E não é hoje em dia tudo   descartável?

Habituado a uma sociedade de usar e deitar fora fazia exactamente o mesmo à vida que vivia de forma segmentada, usando agora, deitando fora depois, sem rumo definido ou objectivo  visivel.

O que não significa nada quanto ao seu destino, porque como bem sabemos o que acontece na vida tem muito pouco que ver com merecimentos e muito mais com as voltas da vida. Por isso se podemos dizer que o destino foi traiçoeiro para si nunca poderemos afirmar que o foi porque ele assim o mereceu, porque foi dissoluto, porque foi um reles  pecador ou tão só porque cada um tem aquilo que merece. Se é que tem! 

André  carrega de há muito tempo  um insolúvel  problema de consciência. Portador de uma rara doença altamente contagiosa leva por isso  uma vida de eremita, porque só o pensamento de que possa por qualquer acto  contagiar alguém o aterroriza . Foi esse medo que o isolou cada vez mais da sociedade.

Começou a evitar todos os convites socias. Com as recusas constantes por seu lado foi deixando de ser convidado

Os caminhos da vida, que nos levam a todos os sitios possíveis levaram naquele dia António e André ao mesmo café de aspecto duvidoso.

André a beber pela chávena com a asa do lado esquerdo para não correr o risco de contaminar alguém.

António a beber pela chávena com a asa do lado esquerdo para evitar o risco de poder ser contaminado.

Passados três meses, dois dias, quatro horas e vinte minutos António morreu de morte bem intencionada.

 
O EDEN NÃO É ETERNO

                          

O Éden era um jardim que havia no paraíso e para onde deus mandou adão e eva dizendo-lhe que podiam comer de tudo menos da árvore do conhecimento. E o que fizeram adão e eva na primeira oportunidade? Colheram o fruto proibido. É esse pecado original que continuamos a pagar todos os dias, o que talvez não consigamos fazer numa só vida.

 
Conheci-te desde sempre.

Desde o teu primeiro dia de vida.

Vi-te nascer e crescer e tornares-te  na mulher que hoje és. 

Uma mulher bonita e discreta.

Mas sobretudo uma mulher que para mim não o era.

Porque para mim, durante muito tempo foste Alice.

Simplesmente Alice.

Por isso a descoberta da mulher foi  tão  estranha.

Durante algum tempo, mesmo desconfortável.

Deixaste de ser Alice  e passaste a ser a mulher.

É essa  mulher que agora revejo à distância de um pensamento.

A mais das vezes passavas por mim de forma invisível. Tinhas o dom de não fazer barulho e só te via quando já estavas demasiado longe para absorver os sabores de ti.

Conheci-te por partes.

Primeiro conheci o teu cheiro. Depois o balancear suave do teu corpo.

Mas o que me prendeu mesmo foram os teus olhos. Olhos tristes, mas olhos promessa. De conquista. De todos os mundos conhecidos.

E foi aí que tudo começou.

Nos teus olhos.

Um dia o meu olhar demorou um pouco mais no teu. E o teu olhar demorou um pouco mais no meu. A cumplicidade por vezes faz-se só deste ato tão simples.

Olhar. Olhar e ver.

E dentro de mim um vulcão adormecido rebentou em mil sóis de brilho e cor.

E amor.

E gratidão.

E ternura.

E plenitude, muita plenitude como se o ar que respiravas fosse o ar que passei a respirar e a vida não fosse mais do que manter-me quedo em contemplação de ti.

E do que precisa quem  tudo tem? Nada?

Sabes o que penso mesmo da nossa separação?

Amávamo-nos tanto e demos tanto um ao outro que um dia nos descobrimos esgotados de tanto dar. E cansados de tanta perfeição.

Nos primeiros tempos a perfeição era… perfeita. Mas com o passar do tempo instalou-se uma monotonia tão grande que fomos incapazes de lhe resistir. E aaproveitamos o primeiro pretexto para a destruir  e voltar rápido à condição de seres comuns capazes de falhar, emendar o erro e voltar a tentar. Foi o episódio do cheiro a perfume. Podia ter sido outro qualquer. Sabias muito bem que não havia qualquer cheiro e que eu te era totalmente fiel, mas era o pretexto ideal e  agarraste-o com as duas mãos.

Lembras-te? Cheguei a casa, dei-te um beijo apaixonado, intenso, mas de imediato afastaste-me com a mão.

Que cheiro é este na tua roupa? Isto é perfume de mulher…onde é que estiveste ontem à noite? Eu? Em lado nenhum. Onde querias que estivesse? Isso foste tu que deixaste cair do teu perfume. Eu não uso deste perfume. Estiveste com outra. Diz-me. Quem é ela? És maluca, não estive com ninguém. Mentiroso. Blá, blá, blá…

As mesmas palavras que enchem poemas sublimes, quando usadas da forma errada podem ser punhais que  não matam, mas ferem de forma profunda.

E foi  assim que por causa de um simples cheiro, tudo se alterou.

Daí em diante cada pretexto servia para me tentares colocar à prova. Se chegava atrasado tinha estado com a outra; se tinha uma conversa ao telefone em tom mais baixo  estava a falar com a loura provocante do quinto andar; se aprimorava no modo de vestir andava a atirar-me á nova patroa. Vivia no estado de condenado permanente.

Porque te amava segui o pior caminho. O de tolerar e aceitar tudo até me transformar num  fantoche a fingir que vivia e era feliz, enquanto me limitava a apanhas as migalhas que deixavas cair.

Coisa que, descobri tarde demais, acontece sempre. Pela razão simples que de que só queremos estar  onde não estamos e a perfeição é saber exactamente onde estamos. Mesmo quando temos tudo queremos  mais mas não sabemos o quê. Por consumirmos tudo da forma mais apressada possível na ansia de encontrar algo que nos satisfaça. Foi assim que nos tranformamos consumidores compulsivos de todas as coisas. Também de sentimentos, mas como não sabemos bem o que queremos consumimos tudo em busca da coisa perfeita. E quantas vezes não descobrimos que o que queremos é o que já tivemos? Mas como o rio não passa duas vezes sob as mesmas pontes também a felicidade só bate á porta uma vez. Ou duas. Ou mais. Que importa quando a maioria das vezes não bate uma única vez? Quando olhamos em redor e vemos as pessoas em corrida desenfreada às novas catedrais, agora chamadas centros comerciais,  percebermos que a maior parte anda perdida na vida.

Será que nós também não sabíamos para onde íamos ou foi outra coisa qualquer?

Se queres que te diga acho que foi outra coisa. Exacto! Foi a perfeição! A perfeição é uma doença. É assim como comer sempre a mesma coisa. Pode ser um prato divinal. Ao fim de algum tempo continua a comer-se                                                                                                                            mas não sabe a nada.

Mas é bom. Mas é divino. Mas é perfeito. Mas não  sabe a nada.     

E ao que não sabe a nada haverá sempre a tentação de tentar mudar.

Aconteceu quando Adão mordeu a maçã e quando tu inventaste que a minha roupa cheirava a perfume de outra mulher.

Isto foi o que pareceu, mas o que aconteceu exactamente é que ambos apanharam a doença da felicidade. De excesso de perfeição . Doença que apanhada uma vez não tem retorno. Doente uma vez doente para sempre! Morrer de felicidade. Foi o que te aconteceu. Não podia ser de outro modo. Amava-te tanto, tanto, tanto que não podia ser de outro modo. Só podias ser minha. De mais ninguém! De mais ninguém.

E agora aqui estás tu a olhar para mim com esses olhos tristes, imóvel como só os cadáveres sabem estar.

Mas eu sei que não morreste mesmo e que daqui a instantes tudo terá passado e voltarás a ser minha como nunca foste no passado. Vá acorda, acorda que temos que ir àquela praia onde fomos no dia do teu aniversário. Lembras-te? Ao fim da tarde os veraneantes foram indo todos embora e acabamos por ficar só os dois naquele areal imenso, longe de tudo. Não sei o que nos deu para fazer aquela loucura.  Mas quando te insinuaste junto de mim e te foste aproximando muito lentamente enquanto tiravas as peças de roupa uma a uma fizeste surgir em mim o lado mais selvagem. De tal maneira que quando estavas mesmo perto não te deixei acabar,  rasguei o teu sutiã e possui-te ali mesmo de forma animal  e  agressiva como se estivessemos no intimo do nosso quarto em vez de um qualquer  lugar publico.  

Há quanto tempo foi isso?

Há quanto tempo estamos aqui? Responde! Porque te calas? O quê? Estás morta? Não estás nada! Vejo bem nos teus olhos que não estás morta. Estás bem viva. Eu é que estou morto. Morto por dentro.

Oh! O que é que eu fui fazer? Eu não te queria fazer mal. Juro que não. Foi sem querer. Se te fiz algum mal foi sem intenção.

Mas há quanto tempo estamos aqui? O melhor é chamar alguém para ver o que se passa contigo. O quê? Estás morta? Já há pouco disseste a mesma coisa. Mas isso não é possível. Como podes estar morta e a falar comigo ao mesmo tempo?

O som estridente da campainha da porta fez-se ouvir de forma urgente. De novo o mesmo som passado algum tempo. Não faças barulho para não saberem que estamos cá. Outra vez a campainha.  

Então vinda de muito longe oiço a minha voz. Não está cá ninguém!

Um estrondo enorme e a porta é derrubada por dois bombeiros que se apressam a manietar-me e a levar-me detido. À saída ainda oiço um bombeiro a dizer para o outro. Pelo cheiro já está morta há vários dias!

A noticia do jornal foi clara e concisa. Homem acometido de uma crise de ciúmes matou a ex mulher com uma facada no coração e esteve fechado com ela dentro de casa durante 4 dias. O cheiro vindo do apartamento alertou os vizinhos que chamaram os bombeiros.

Do julgamento e condenação fica o meu depoimento.

Informo  por minha honra que a minha ex mulher, Alice de seu nome morreu de felicidade extrema com uma facada no coração dada por mim. Mais informo que amei, amo e continuarei a amar Alice para todo o sempre.

Palavras ditas dá um salto para o lado, rouba a pistola a um policia e suicida-se com um tiro cabeça.

 
7. COLECIONADOR DE ESPIRITOS (intencionalmente interrompido)

João acordou com uma estranha sensação de inutilidade. Coisa pouco frequente. Conhecido como um homem terra a terra pensava-se sempre indispensável e com mil tarefas por fazer. Aliás mal acordou começou de imediato a fazer mentalmente uma lista de tarefas para o dia de forma não só a não se esquecer de nenhuma, mas também a executá-las da forma mais racional possível.

Detestava perdas de tempo inúteis.

A primeira tarefa era espreitar o dia e se possível a vizinha do terceiro direito que à quela hora costumava vir à janela com a roupa com que veio ao mundo.

O dia estava lá a nascer pujante como sempre, mas da vizinha nem rasto.

Normal. O dia nascia todos os dias mas a vizinha só acontecia de vez em quando.

Espreitou uma vez mais pela janela mas não viu a vizinha. Não viu ninguém.

Estranho. Àquela hora já costumava andar muita gente na rua. Coincidências.

Tratou de si por fora. Por dentro a mais das vezes não o conseguia fazer. Que estranho. Há muito tempo já que não passam carros. Deve ter havido algum acidente e o trânsito está interrompido.

Tudo preparado para o dia abre a porta da rua e sai para…o vazio. É. A sensação é de vazio. Mas é muito mais do que isso. É um vazio que pesa toneladas.

Mas o que se passa aqui? Em todo o espaço que a vista alcança não se vê uma única pessoa.

O acidente deve ter sido muito grande para que todos tenham ido ver.

Ainda a pensar no acidente seguiu para o trabalho, mas havia algo de estranho no ar. Só passado algum tempo se apercebeu do que se passava. Não havia pessoas. Estava tudo a funcionar. Havia carros nas ruas a movimentarem-se com normalidade. Quer dizer a possível sem condutores, ainda que estivessem a ser conduzidos por alguém porque não chocavam uns com os outros e respeitavam os sinais de trânsito. Nos estabelecimentos tudo parecia também estar a funcionar, porque se via todo o equipamento em ação. Se assim se pode dizer de chávenas que andam pelo ar, de máquinas que se ligam e desligam sem ninguém lhes tocar.  

Ainda atordoado e muito assustado sentiu-se o ser mais infeliz de todo o universo.

Em boa verdade sentiu-se o único ser de todo o universo.

Foi nesse instante exato que toda a infelicidade pareceu ser exaurida, substituída por uma calma cósmica.

No seu posto de Comandante Supremo da Luz do Universo o Magnânimo deu um suspiro de alívio. A última alma tinha sido separada.

Já está! Agora as Trevas já não nos podem dominar!

Tudo tinha começado com algumas deslocações de um grupo de almas a uma povoação que ficava a vários milhões de anos luz do Centro.

CORRIGIDO ATE AQUI    Apesar de se tratar de um povoado insignificante à escala galáctica com apenas dez mil milhões de almas, possuía uma percentagem avassaladora de queixas de tentativas de migração de elementos  das forças das Trevas.           

Esse grupo tinha a missão de investigar e elaborar um relatório sobre o que estava a acontecer.

Vão ver que não passa de mais uma horda de Almas Penadas a quererem fugir das Trevas a qualquer custo, ecoava uma Alma do grupo.

Não percebem que se entrarem pelo segmento errado só aumentam as próprias dificuldades e a possibilidade de encontrarem o seu verdadeiro caminho, ecoa outra alma.               

No instante seguinte percorreram os milhões de quilómetros que os separavam da povoação e estão todas a pairar em torno de  uma espécie de mesa que não passa de um holograma resultante das vontades conjuntas. Só por si este facto demonstra a importância    que dão ao assunto. Noutras situações têm projetado cenários bem mais agradáveis como jardins à beira mar ou longínquas estancias balneares.    

Enquanto o Representante Local fazia um resumo dos últimos acontecimentos e os seus pensamentos iam sendo absorvidos pelos restantes os semblantes iam  ficando cada vez mais carregados.

Perceberam de imediato que o que parecia ser um simples caso de migração clandestina era, afinal, uma tentativa de invasão planeada de forma muito organizada.  

No mesmo instante foi convocado o Conselho Supremo da Luz do Universo que de imediato iniciou os trabalhos. Habituadas a ter muito tempo livre as almas eram conhecidas por serem brincalhonas e estarem permanentemente a pregar partidas umas às outras. Foi o que pensaram ainda muitas delas. Que se tratava de uma brincadeira . Mas só  até olharem para a cara do Comandante Supremo.

Uma invasão!!

Comunicar através da leitura da mente não era fácil e muitas vezes as almas novatas confundiam as coisas, mas as mais antigas (algumas com milhões de anos) conseguiam leituras instantâneas espantosas. Por isso não admira que em poucos segundos quase todos soubessem já o que se estava a passar.

Algures no mais recôndito do ponto mais obscuro do universo o Colecionador de Espíritos, nome pelo qual era conhecido o Comandante Supremo das Trevas,  cansara-se de aliciar as almas uma a uma e traçara um plano de ataque maciço, mas selectivo.

Quando percebeu que unidas as almas constituíam uma força indestrutível decidiu mudar de táctica e substituir as almas que ocupavam lugares relevantes por outras da sua confiança e assim a pouco e pouco foi aumentando o seu domínio, que dentro de pouco tempo seria total se não a resposta pronta do Magnanimo .  

No instante seguinte o Conselho Supremo da Luz do Universo iniciou uma acção que nunca havia sequer sido pensada – separar todas as almas!

Separadas cada alma só se via a si mesmo. No principio foi engraçado ver os seus corpos materiais primeiro atónitos depois em verdadeiro pânico quando viam tudo a movimentar-se em redor.

As almas sabiam o que se estava a passar mas os seus corpos não.

A força das almas resultava da união de todas numa só. Com esta mudança por um lado ficavam muito fracas e á mercê das forças das trevas, mas por outro eram extremamente difíceis de encontrar e aquelas a quem isso acontecia eram de imediato pulverizadas e desintegradas. Mas o que estava para…

 

Este texto fica intencionalmente inacabado.
Uma série de factos e coincidências levaram-me a concluir que para especulação já basta assim.
Não existiu qualquer espécie de pressão para que isso fosse feito.