quarta-feira, fevereiro 08, 2012

Ektom (8) - Os acomodados, os incomodados e Deus

A noite chegou no meio da maior ansiedade. Durante a tarde a noticia da chegada do pregador correu célere toda a aldeia de tal modo que ao fim do dia havia já inúmeras versões sobre a origem do pregador e sobre o que tinha sido dito. Por isso não admira que muito antes da hora marcada para a reunião o largo fronteiro ao Centro se encontrasse já repleto de gente. Ninguém queria perder o que quer que fosse e os que ainda não tinham visto o pregador não queriam perder a oportunidade.
Pela primeira vez na história de Ektom foi cancelada uma anulação. E pela simples razão que mais ninguém se lembrou de tal. Não era possível saber se isso traria algumas consequências, mas, neste momento, isso pouco importava.
Seguiram-se largos momentos de espera e impaciência. Os que ainda não tinham visto o pregador eram os mais impacientes.
Faltavam poucos minutos para as oito horas quando a figura imponente do pregador surgiu ao fim da rua. Como que por encanto todas as conversas cessaram e todos os olhares convergiram na sua direcção. Era um homem com mais de dois metros de altura, tinha ombros largos e sem ser magro as suas funções eram bem vincadas, sobressaindo os ossos temporais e um queixo firme; a sotaina até aos pés, o enorme chapéu de abas e uns pés grandes completavam o conjunto. Não admira que todos se tenham calado à sua passagem, já que a sua figura impunha respeito por si mesma. Foi no meio desse silêncio que atravessou todo o largo até à porta do Centro. Aqui aguardavam-no os mais velhos e todos os que se conseguiram aproximar.
"Você é que é o responsável?", pergunta o pregador a um do grupo que parecia destacar-se.
"Aqui somos todos responsáveis."
"Sim, sim. Não é isso que eu quero dizer. Quem é que dá as ordens?"
"Ordens, para quê? Aqui ninguém dá ordens."
"Mas em qualquer sociedade tem que haver uma pessoa ou um grupo de pessoas que tome as decisões nos momentos difíceis, que assuma a responsabilidade... enfim... um chefe. Não há outra maneira de dizer isto."
"Acho que entendi e a resposta é não. Não temos chefe nem precisamos!"
"Mas sem chefes nenhuma sociedade pode sobreviver."
"Acha-nos com aspecto de quem não sobreviveu?"
"Bem... não... mas..."
"Aqui cada um sabe exactamente o que tem que fazer e isso basta."
O pregador hesita. Não há dúvida que esta é uma situação diferente de todas as outras.
"Não há dúvida que a vossa é uma situação singular, mas a questão principal persiste - mesmo que seja possível viver sem chefes, já é totalmente impossível viver sem Deus. A vida sem Deus não só não é possível como não tem qualquer sentido."
"Deus, deus, deus! Mas afinal quem é deus? O que é que nós temos que ver com ele?"
O pregador hesita uma vez mais. Para si não existem quaisquer dúvidas, mas sente que ali tem que ter muito cuidado com as palavras.
"Vou tentar explicar. Penso que todas as pessoas, de um modo ou de outro, em algum momento das vossas vidas, já se interrogaram sobre o significado da existência. Nascer, viver e morrer, para quê? Qual o sentido das coisas se no fim nos transformarmos em pó e só pó? Sem principio nem fim nada fará sentido, as noções de certo e errado, de bom e de mau serão puros conceitos e tudo será permitido. Quando o homem se começa a interrogar, pergunta atrás de pergunta chega inevitavelmente à última pergunta : e no principio era o quê? Porque o problema não é o que existiu, existe ou vai existir; a grande questão é o que existia no principio de todas as coisas. Ou seja, o que é que existia quando não existia nada? Complicado? De modo algum. Deus! Deus é o principio e fim de todas as coisas, o bem supremo e único caminho possível para o homem."
Aqui chegado o burburinho na sala era tal que foi necessário ao mais velho, pela primeira vez na sua vida, quase gritar para conseguir alguma ordem na sala. E ele mesmo tomou a palavra.
"Com este barulho não conseguimos perceber nada. Quem desejar falar inscreve-se nesta mesa a fim de evitar mais confusões."
Surgiram de imediato inúmeras inscrições e o céptico conseguiu ser o primeiro a falar.
"Antes de mais parece-me que estamos a começar pelo fim. Acho que a primeira coisa a fazer é entender com quem estamos a falar. Quem é e de onde vem este homem? Como é que ele aparece aqui? Isto é que é preciso determinar antes de continuarmos. E se tudo isto não for obra do acaso, antes fizer parte de uma conspiração muito bem montada? Neste caso tudo muda de figura, não é? Por isso proponho que antes de mais esclareçamos quem é o pregador, de onde vem e o que pretende."
Um murmúrio de assentimento percorreu a assistência.
O mais velho retomou a palavra.
"Estamos de acordo. Deixemos então que o pregador nos esclareça em relação a essas questões."
"Não estou a perceber muito bem o que pretendem, mas respondo sem qualquer receio. É óbvio que a ideia de uma conspiração é um disparate. Eu faço parte de uma congregação religiosa, cuja missão é andar pelos cantos do mundo a espalhar a mensagem de Deus. Digamos que sou um mensageiro de Deus que mais não pretende que divulgar a sua doutrina. Encontrava-me completamente perdido nestas montanhas inóspitas e não sonhava que aqui pudesse existir qualquer tipo de vida até ver aparecer as primeiras casas da vossa aldeia. Esta é que é a verdade."
O céptico salta de imediato em defesa da sua tese.
"Não acredito. É mentira. Tudo isto não passa de uma conspiração em que alguns de nós estão metidos, ainda que neste momento não entenda muito bem porquê."
As últimas palavras são acompanhadas de algumas exclamações de perplexidade. O céptico não se atreve ainda a avançar com nomes, mas a reacção das pessoas agrada-lhe.
É o mais velho quem retoma de novo a palavra.
"O que acabas de dizer é muito grave e para poder ser considerado terás que mostrar provas do que afirmas. De qualquer modo penso que devíamos dar ao pregador a oportunidade de esclarecer as muitas questões que deixou no ar."
A ideia é aceite e o pregador retoma a palavra.
"A verdade é que a origem das nossas angústias, dos medos mais profundos, está no desconhecimento. Sem sabermos de onde vimos, não podemos saber para onde vamos e só em Deus é possível encontrar a resposta, porque todos somos seus filhos, criados à sua imagem e semelhança."
"Para quê?", grita alguém ao fundo da sala.
"Para quê, o quê?"
"Para que é que deus nos criou?"
"Ora... para... para o amarmos acima de todas as coisas!"
"Grande vaidoso!"
Uma risada geral acompanha a última frase. Nesta altura é mais ou menos evidente que ainda ninguém entendeu o que o pregador tem estado a tentar dizer. No entanto o pregador não é homem de desistir com facilidade.
"Não acredito que em toda a vossa vida nunca se tenham interrogado, uma vez que fosse, sobre o sentido da vida."
"E porque havíamos de fazer isso? O sentido da minha vida é fazer sapatos até aos duzentos e setenta e três anos. Que outro sentido preciso?"
"O do significado da existência. O homem existe porquê, para quê?"
"Segundo o que tu dizes porque deus o criou, ainda que não entenda muito bem porquê. Porque não acredito que estivesses a falar a sério quando disseste que deus criou o homem para o adorar, porque isso é um enorme disparate."
"Deus quis partilhar o bem sagrado da vida com alguém e criou o homem, mas deu-lhe liberdade de escolha. Deixou-o escolher entre a condenação e a salvação, indicando-lhe sempre o verdadeiro caminho a seguir."
"Tanto trabalho só para isso? Tudo o que tens dito soa mais a auto-satisfação que outra coisa."
"Que disparate! Deus é Deus e não precisa de justificar nada e muito menos de justificar-se."
"E porque não? Se só existisse deus como é que ele sabia que era deus?"
Aproveitando uma pequena pausa o céptico entra na discussão.
"Isto não passa tudo de uma enorme conspiração. Deus não existe!"
"Claro que existe! Sempre existiu!"
O sonhador entra no diálogo cruzado e começa a ser notório que a troca de ideias é entre si e o céptico.
"Como podes afirmar uma coisa dessas, tu que não sabes nada de nada? Não entendes que o pregador está a falar de coisas que é preciso sentir e nas quais a lógica não intervém. Acho que somos todos demasiado ignorantes no assunto e que devemos deixar o pregador explicar-se até ao fim."
O mais velho não perdeu o ensejo de acalmar os ânimos e pediu ao pregador que continuasse.
"O grande desafio que Deus lançou ao homem foi a liberdade que lhe deu de escolher o seu próprio caminho. Perguntam-me muitas vezes porque é que Deus não criou seres perfeitos ou porque não intervém de imediato face a qualquer cataclismo. Embora possa parecer uma crueldade a verdade é que isso é a consequência do grande desafio da liberdade. Se Deus interviesse em cada instante estaria a passar ao homem um atestado de menoridade, a transformá-lo numa criança mimada a quem todos auxiliam ao menor tropeção. Ora o grande desafio é deixar o homem por si mesmo encontrar o seu próprio caminho. O verdadeiro caminho que o levará de novo a Deus, à sua meta final - a perfeição”.
A perfeição uma vez mais. O sonhador não consegue evitar um arrepio estranho. ’Deve ser tão aborrecido ser deus, ver passar o tempo da eternidade, acabando sem nada que fazer. Terá deus necessidade de inventar coisas para fazer? Será por isso que inventou este e quem sabe outros homens? Assim sendo quererá mesmo que o homem atinja a perfeição? Ou estaremos condenados para todo o sempre a viver entre a necessidade imperiosa de a procurar e a impossibilidade de a atingir? Mas se assim for... será o homem uma criação cíclica cuja busca da perfeição acaba sempre em destruição, uma vez e outra e outra até ao infinito?... Mas... que disparate... claro que não!’
Entretanto o pregador continua a sua explicação.
“Só a perfeição em todas as coisas dará acesso ao reino de Deus. Os que fizerem da vida um hino de paz, bondade e amor irão para o reino dos céus, os outros sofrerão as agruras do purgatório.”
O céptico está cada vez mais farto de uma conversa da qual não entende nada.
“Mas o que é que nós temos que ver com isso?”
“Todos os homens são filhos de Deus, ainda que alguns pensem que não.”
“Mesmo que fosse como dizes, nós não precisamos de nada disso, porque nós já atingimos a perfeição.”
O sonhador não consegue resistir uma vez mais.
“Isso não é verdade! Continuas a falar de coisas que não entendes. Podes não acreditar, mas não podes proibir os outros de acreditarem.”
“Eu sabia! Eu sabia! Tudo isto não passa de uma conspiração. Não sei com que intenção, mas é evidente que alguns querem acabar com o actual modo de vida de Ektom. Então uniram-se a este pregador, que foram buscar não sei onde e agora tentam lançar a confusão para fazer parecer que tudo é obra do acaso. Esse tal deus é que de certeza não é culpado, pois só existe na vossa imaginação.”
“Mas qual conspiração? Tu estás doido? Se aqui há alguém a conspirar és tu. E sabes porquê? Porque tens medo. Medo de coisas que não entendes. Só pessoas com medo e sem vontade podem aceitar como normal a nossa perfeição. Que sentido tem a nossa existência? Pois não vês que é uma vida sem qualquer fim? Com o correr dos anos e o passar das gerações tornamo-nos seres neutros, sem vontade própria, sem qualquer objectivo. Isto é viver? É esta a vida que desejas?”
“É! É esta a vida que desejo! E porque não? Que tens tu e o teu pregador de novo para nos oferecer? Quimeras, só quimeras e no fim um paraíso igual à tua vida de hoje, onde ficarás para sempre. Para sempre! Isso é que eu não quero de certeza. E para que isso não aconteça só há uma solução!”
Entretanto o burburinho da sala ia aumentando e era cada vez mais difícil ouvir os argumentos de parte a parte. A custo o mais velho tenta impor a ordem.
“E qual é a solução?”
“É preciso esquecer por completo o dia de hoje e anular o pregador!”
Por momentos pairou o silêncio, como se não tivessem percebido as palavras do céptico. Depois começou tudo a falar ao mesmo tempo tornando impossível ouvir o que quer que fosse. Porque anular alguém deliberadamente era algo que nunca tinha passado pela cabeça de ninguém. Um acto tão natural como a anulação em tempo devido, assumia contornos de monstruosidade quando concebido fora desse tempo.
Durante muito tempo foi impossível travar todas as conversas cruzadas. Depois de anos e anos de total apatia, sem nada para dizer, todas aquelas pessoas descobriram de repente uma nova maneira de estar na vida - a das ideias contraditórias, das tomadas de posição. Assumido o desfazer da unanimidade todos pretendiam estar dentro da razão e todos desejavam manifestar os seus pontos de vista. A vontade ancestral de uns homens dominarem os outros estava a vir lentamente ao de cima, ainda que, para já, só no campo das ideias.
Por entre o tumulto é ainda o sonhador que se consegue fazer ouvir.
“Mas vocês vão permitir uma coisa destas? Será possível que não vejam que a única coisa que este homem pretende é dar-vos a possibilidade de escolher outro caminho? Porque havemos de rejeitar isso? Só porque alguns não o desejam? Não! Não podemos consentir isso!”
Um breve murmúrio de aprovação foi de imediato abafado pelos gritos de reprovação.
“Mas quem é que deseja outra vida? Será possível uma vida melhor que a nossa? Claro que não! E não vamos permitir que este homenzinho, aliado a alguns traidores, altere a nossa vida. Votemos a execução da anulação e acabemos com esta palhaçada de uma vez por todas!”
Enquanto a disputa sobe de tom a assistência agita-se cada vez mais, como uma orquestra que seguisse as indicações de dois maestros ao mesmo tempo, cada tocando a sua música. Formam-se pequenos grupos. Aqui uma frase mais violenta, ali mesmo um grito. Ao fundo da sala um homem empurra outro contra a parede, num acto de violência ainda ontem inconcebível e já hoje tornado normal. Como é normal que a esse acto de violência se responda com outro acto violento.
É como se, de um momento para o outro algo se tivesse interposto entre aqueles homens e a sua lógica inabalável. Filhos de um passado que não foi seu, vitimas de um sistema que os satisfaz plenamente, mas o anulou enquanto seres com vontade própria, foi como se, por magia, alguém lhes devolvesse essa vontade e com ela muitas outras coisas.
Uns, os acomodados, pretendem viver uma vida que, de preferência já tenha sido vivida, para assim poderem vegetar indolentemente enquanto fingem que vivem. Os outros, os incomodados pretendem coisas novas, sentir a vida a cada instante, correr o risco das descobertas e do desconhecido.
Mais do que qualquer outra coisa é isto que está em jogo. O pregador e deus têm o significado que têm, mas são pouco mais que catalisadores num processo tão longo como o homem.
O homem foi criado para andar, mas são poucos os que andam; a maior parte rasteja, enquanto uma minoria deseja voar.
Quando o tumulto atingiu proporções difíceis de dominar o sonhador e os que o acompanhavam aperceberam-se do perigo que o pregador podia correr e, aproveitando a confusão, decidiram levá-lo para lugar seguro. Quando o outro grupo se apercebeu disso foi a caos total. As acusações mútuas redobraram de intensidade e em pouco tempo passou-se à agressão. Em pouco tempo generalizou-se uma pequena batalha que só não teve mais consequências, porque os meios disponíveis para as agressões eram poucos. Por fim com bancos partidos, janelas quebradas, tudo num reboliço tremendo os homens foram abandonando lentamente o Centro. Cabisbaixos, alguns envergonhados, mas quase todos decididos a não ceder. Cada qual pensava estar convencido de ter vencido. mesmo sem saber bem o quê.