quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Ektom (9) A força da Razão

Quando, aproveitando a confusão e temendo que alguma coisa lhe pudesse acontecer, o sonhador e os amigos levaram o pregador para um local seguro. não tinham qualquer plano traçado. Mas era evidente que esse plano era cada vez mais importante, já não só como tentativa de defesa das suas ideias, mas, principalmente, como salvaguarda da integridade física.
O pregador esse sentia-se completamente ultrapassado pelos acontecimentos. Quando pensava ter descoberto um campo fértil e virgem de evangelização...
Enquanto se dirigiam para os terrenos de cultivo onde existiam umas pequenas cabanas para guardar as alfaias agrícolas, o sonhador ia tentando explicar ao pregador o que se estava a passar.
"Ektom é, desde há alguns séculos, um autêntico paraíso. Não temos fome, nem doenças, nem guerras ou qualquer dos males que, em tempos remotos, atingiram a humanidade. Mas o que é óptimo por um lado, por outro, transformou-nos em seres insensíveis, apáticos, neutralizados pela isenção das necessidades. Quando perguntaste se não possuímos qualquer religião, lembrei-me que na verdade não existe no sentido que lhe atribuis, mas de facto possuímos uma - a perfeição. E cultivamo-la com tal convicção que se tornou tabu falar do que quer que fosse que a pusesse em causa. Por isso quando alguém sentia qualquer dúvida nunca a manifestava por uma espécie de pudor auto-inculcado que não saberia explicar mas que estava bem dentro de cada um de nós. Mas se alguns se permitiam essas dúvidas interiores, outros, talvez a maioria, tinham-se acomodado por completo e não só não punham nada em causa como temiam que alguém o pudesse fazer; estavam de tal modo acomodados que não concebiam sequer a ideia de as coisas puderem ser de outro modo. Por isso o antagonismo que hoje pudeste presenciar não é de hoje e tu não és mais que o catalisador de algo que já existia e hoje extravasou. Agora precisamos analisar a situação com calma. Não sei como irão reagir quando derem pela tua falta, mas convém que tomemos algumas precauções."
O pequeno grupo tinha entretanto chegado junto de uma casota que, pela sua posição, foi escolhida para refúgio nos tempos mais próximos. Depois de instalados o sonhador pediu a um dos companheiros que voltasse discretamente à aldeia e tentasse averiguar como estavam as coisas.
O pregador, esse continuava a não entender muito bem o que se estava a passar.
"Mas porquê tanta intolerância, quando antes existia toda a tolerância possível?"
"O aumento da intolerância é directamente proporcional à incapacidade de entendimento. Quanto menos certezas, menos interessa o diálogo ainda que, infelizmente, sejam essas as pessoas que exteriorizam as maiores certezas. O que não acontece connosco que, neste momento, o que menos temos são certezas. Se já tínhamos muitas dúvidas agora ainda temos mais. Neste momento estamos abertos a discutir todas as possibilidades, só que não nos parece que essa seja a disposição de todos."
Passado algum tempo o mensageiro voltou da aldeia.
"Não consegui saber com precisão o que se está a passar, mas à primeira vista parece estarem a formar um grupo de combate. E estão à procura do pregador."
O sonhador já esperava qualquer coisa do género, mas não tão depressa. Os acontecimentos estavam a precipitar-se e parecia quererem resolver tudo o mais rapidamente possível. O que exigia uma resposta igualmente rápida.
"Quantas pessoas pensas que conseguiram reunir?"
"Até ao momento não muitas. Há muita expectativa, mas as pessoas não sabem ainda muito bem o que fazer."
"Mas mais cedo ou mais tarde terão que tomar partido, por isso é importante que saibam com a maior clareza o que se está a passar. E se forem informados por nós tanto melhor. Todos os que puderem vão aproveitar as próximas horas para tentar contactar o maior número de pessoas possível. Os outros vão ficar aqui o resto da noite. Ainda que pense que não vai acontecer nada nas próximas horas não pudemos descurar a protecção do pregador."
O pregador começava a sentir o incómodo de uma situação que o ultrapassava e cada vez entendia menos. Ele falava uma linguagem e todas aquelas pessoas outra completamente diferente. Como quer que fosse não lhe parecia que o que tinha acontecido justificasse a verdadeira batalha que via preparar.
"Continuo a não entender muito bem o que se está a passar."
"Não só tens que começar a tentar entender como a preocupar-te contigo mesmo. Vamos tentar defender-te o mais possível mas não sei até que ponto seremos capazes de o fazer. Mas, em termos de culpas não te preocupes demasiado, porque, mais cedo ou mais tarde, isto ou algo parecido iria acabar por acontecer. Tu limitaste-te a precipitar os acontecimentos, nada mais. Dentro de cada um de nós há muito que tudo se vinha desenhando, tomando forma, até que um dia acabaria por explodir."
O sonhador começa a ver tudo nítido à sua frente. É como se estivesse perante um enorme campo verdejante e bem no meio um enorme sulco por onde caminham todos os Ektomianos. De vez em quando alguns olham desconfiados para os lados, mas o sulco é tão profundo que não conseguem ver nada e os que vêm atrás logo os empurram e obrigam a seguir. A partir de determinada altura uns começam a vigiar os outros, não permitindo o mínimo deslize. Os que deixaram de pensar, não deixam que os outros pensem, senão têm que voltar a pensar de novo. E pensar cansa tanto! Agora atingido o cume do morro, ao olhar para trás o sonhador interroga-se em relação a tudo o que aconteceu. O sulco por onde caminharam todos estes séculos é uma parte insignificante de um enorme vale verdejante que se estende até perder de vista num desafio irrecusável. São tantas as possibilidades que quase tem medo da descoberta de tanta liberdade. Mas tem a certeza que é muito melhor todo o medo da liberdade que a tranquilidade da prisão.
"O que se está a passar é uma luta dentro de cada um. Incapazes de lutar consigo mesmos os homens têm necessidade de dar forma exterior à luta. Como se padecesses de um mal profundo e na impossibilidade de o curar tentasses destruir o causador do mal. Não passa de uma tentativa de transferência de culpa que não soluciona o problema, mas talvez te permita dormir descansado. É uma luta que ninguém pode ganhar, mas é uma luta inevitável."
Entretanto vão chegando diversos grupos de pessoas a quem o sonhador procura receber e explicar o melhor possível a situação. Quase todos os apoiantes do sonhador eram agricultores, os quais, em teoria, eram a maior parte, de qualquer modo, neste momento, era ainda demasiado cedo para fazer qualquer previsão quanto ao que se iria passar.
Ao amanhecer tinha sido reunido um grupo numeroso que apesar da falta de experiência nestas andanças acabara por se armar a si mesmo com os mais diversos meios. Quem não soubesse o que se estava a passar imaginaria com facilidade que não passavam de um grupo de camponeses a preparar-se para mais um dia de trabalho - uns empunhavam ancinhos, outros enxadas. pás, foices, enfim, tudo o que estava mais à mão e que não faziam a mínima ideia de como utilizar se e quando fosse necessário. Isso era um problema para resolver na altura própria.
O sonhador vai tentando explicar o inexplicável.
"É bom que saibam que estamos aqui reunidos para defender a liberdade. Infelizmente os acontecimentos precipitaram-se e, neste momento é imprevisível o que pode acontecer, por isso temos que estar preparados para tudo. Sabemos que a violência não conduz a lado algum, por isso esperamos que tal não aconteça. No entanto (e faço votos para que tal não aconteça) temos que estar preparados para tudo."
Um mensageiro mais atrasado chegou com mais alguns homens e as últimas noticias do aldeamento.
"O Centro está transformado em quartel general e estão a ser barricados todos os acessos. O céptico afirma para quem o quer ouvir que o facto de termos desaparecido com o pregador só confirma a sua ideia que tudo faz parte de um vasto plano, uma conspiração contra os verdadeiros ektomianos. A construção de armamento é intensa, no entanto, são bem menos do que nós."
"Não se iludam com o número porque vão estar de certeza melhor armados que nós. De qualquer modo continuo a acreditar mais na razão do que na força", acrescenta o sonhador.
Muitos estavam ali só por sua causa, por o saberem honesto e amigo da verdade.
"Nas próximas horas não vai acontecer nada de importante, por isso sugiro que descansemos. Vamos organizar grupos de vigilância e todos os outros podem dormir."
Apesar de dar mostras de uma calma contagiante, por dentro, o sonhador era um homem bem diferente. Há centenas de anos que nada acontecia em Ektom e só isso era suficiente para o inquietar, depois era tudo ainda muito confuso para conseguir ter uma ideia das consequências dos passos que estavam a ser dados de uma maneira tão precipitada.
Os homens aproveitaram o resto do dia para descansar enquanto tudo se mantém ainda muito esbatido. Neste momento não há qualquer divisão nítida entre os dois grupos e é frequente passarem pessoas de um grupo para o outro o que, por um lado, permite recolher mais informações, mas, por outro, faz com que tudo se torne ainda mais confuso.
Ektom prepara-se para viver um acontecimento que escapa ao espartilho de centenas e centenas de anos. Estarão os seus habitantes preparados para isso?