segunda-feira, abril 02, 2012

Ektom (10) - A Razão da Força

Gorada a hipótese de fazer vingar as suas ideias através de uma votação o céptico sente que tem de iniciar uma nova estratégica. Até porque a situação e, neste momento, muito diferente. Depois da cena de pancadaria desencadeada no Centro ficou claro que nada pode ser solucionado a não ser pela força. E para isso a antecipação é fundamental. Por isso logo que saiu do Centro tratou de acautelar as acções que lhe pudessem dar vantagem em caso de conflito.
Em abono da verdade deve dizer-se que houve sempre uma certa divisão entre artesãos e agricultores. Os artesãos foram sempre mais materialistas, mais terra a terra, com um grande espirito comunitário é certo, mas com uma visão muito simplista da vida. Os agricultores por seu lado eram mais idealistas, mais individualistas, com uma certa noção metafísica da existência.
O contacto com a natureza teve sempre um efeito de nostalgia e desprendimento sobre os homens ao mesmo tempo que as suas tarefas lhes deixam quase sempre muito tempo para si mesmos, para se interrogarem e indagarem o mundo em redor. Os artesãos, por seu lado, mais ocupados habituaram-se a viver sem ter que pensar e a reagir a estímulos sem se preocuparem com porquês e para quês. O que aliado à satisfação plena das suas necessidades os transformou em seres acomodados, capazes de tudo para manterem essa situação.
Apesar destas diferenças nunca terem sido notórias enquanto tudo decorreu normalmente. Só a partir do momento em que surgiram as primeiras diferenças é que as contradições começaram a vir ao de cima.
"Bem, meus amigos, parece-me que a partir deste momento está mais claro que nunca que tudo não passa de uma enorme conspiração, cujos fins no fim serão compreendidos. A partir do que aconteceu hoje tudo pode acontecer e temos que nos preparar para todas as possibilidades. Proponho que todos os que tenham possibilidades de construir qualquer armamento o façam o mais rápido possível. No caso de ser necessário o uso da força é importante estarmos preparados o melhor possível. O importante é preservar o modo de vida de Ektom, porque todos sabemos que não é possível mudar para melhor. Nós conseguimos a perfeição e melhor não pode existir. Que nos interessa deus, supondo que existe? Que interessa a vida eterna, a paz para sempre? Quem é que quer a eternidade? Para quê?"
Um murmúrio de aprovação acolhe as ultimas palavras. Remetidos desde sempre a uma vida ociosa, sem sobressaltos, sempre igual, viram com apreensão a chegada do pregador, pelo que isso podia alterar o seu modo de vida. Não lhes interessavam as sensações, as emoções ou quaisquer manifestações do mesmo género. Pelo contrário, tinham medo delas. Cada dia devia ser igual ao anterior, como uma fotocópia de uma única vivência que depois, em cada dia, era exibida como se de um original se tratasse e era isso que desejavam acima de tudo.
Ao fim de algumas horas todos os homens estavam armados com as armas mais variadas e estranhas, no fundo, tudo o que foi possível construir com os recursos existentes.
Os argumentos do céptico apesar de alguns não os entenderem muito bem conseguem um eco muito forte. Entre outras coisas o facto de não estarem habituados a pensarem faz com que aceitem com facilidade o serem comandados. Quando o céptico explicou que talvez fosse necessário lutar alguns assustaram-se, mas quando lhes disse que estava em causa o seu modo de vida puseram de lado todos os receios e dispuseram-se a fazer tudo o que fosse necessário.
O homem é, na verdade um animal capaz dos maiores esforços para não fazer nada.
As informações que vão chegando tornam claro que o confronto é inevitável. Quando o niilismo atinge as pessoas só com dificuldade a consciência consegue impor-se.
Ainda assim passam vários dias sem que qualquer das partes se decida por qualquer acção. Os mensageiros continuam num vaivém continuo e cada uma das facções sabe tanto da outra como ela mesma, apesar disso agem como se as suas acções fossem as mais secretas de todas, como se uma identidade supra-irracional tivesse definitivamente tomado conta de todos eles.
A razão enquanto valor absoluto é uma abstracção e só isso explica que em tantos conflitos se defenda o uso da força, sabendo não só que não têm razão como podem ser destruídos por isso.
Além dos dois grupos mais ou menos definidos havia um outro maior que os dois juntos - o dos apanhados no meio - quase sempre o maioritário em qualquer conflito.
Entretanto todos estes acontecimentos começaram a ter reflexos na vida da aldeia. A alteração da ordem instituída alterou também comportamentos e todos se começaram a preocupar com o que os outros faziam. É fácil prever as consequências num sistema perfeito em que todos dependiam de todos. A anarquia como sistema ideal de organização social só consegue sobreviver na perfeição; se a cadeia se parte a perfeição transforma-se num ápice na desorganização absoluta.
E isto foi o que aconteceu em Ektom.
Logo que um elemento deixou de cumprir as suas tarefas todo o edifício ruiu e cada um passou a sobrepor os seus interesses aos da comunidade, no mínimo, aos do seu grupo. Um grupo passou a controlar os bens existentes no Centro e os de artesanato e o outro os bens agrícolas e a distribuição deixou de ser feita de modo equilibrado passando a ser feita arbitrariamente e ao sabor das conveniências do momento. A posse dos bens de consumo trouxe para a luta um elemento novo que em caso de conflito generalizado se podia mostrar decisivo.