terça-feira, abril 17, 2012

Ektom (11) Onde ninguém quer o que quer e tudo recomeça

Quando concluiram que podia estar iminente um desastre de proporções inimagináveis os chefes de ambos os grupos começaram a interrogar-se se não teriam ido longe de mais, sentindo-se, cada um à sua maneira, a perder o controle das coisas.
A verdade é que poucos tinham consciência do que efectivamente se estava a passar e a partir de determinada altura foi óbvio que mesmo os mais avisados estavam a ser ultrapassados pelos acontecimentos. A teia urdida primeiro, alimentando-se de si mesma depois, começou a ser tão grande que acabou por se transformar numa bola gigante e incontrolável. Quando o céptico e o sonhador perceberam isso, tentaram um esforço derradeiro de entendimento e através de mensageiros combinaram um encontro secreto.
É céptico quem toma a palavra.
"É evidente que não só não aceitaremos o pregador como já não é possível a sua saída de Ektom. Ainda que esquecêssemos tudo o que se passou, se ele saísse daqui viriam outros e tudo recomeçaria. Por isso proponho que esqueçamos tudo o que se passou e que recomecemos como se nada tivesse acontecido e aprisionemos o pregador num lugar incomunicável para sempre."
"É uma proposta que, apesar de tudo e em nome de todos os habitantes de Ektom não me repugnaria aceitar, mas não vês que isso é impossível? O facto de fingir que não aconteceu nada não elimina os sentimentos das pessoas e esses estão lá, dentro de cada uma e jamais poderá ser silenciado. Mesmo sem o pregador mais cedo ou mais tarde tudo voltaria ao de cima. Não posso aceitar a tua proposta."
"Então que fazer? Tens alguma ideia?"
"Vamos deixar os acontecimentos seguirem o seu rumo normal."
"E não vês que isso também não é possível? Como não fazer nada ante a ameaça de destruição que paira sobre o nosso modo de vida?"
"E se intimamente for esse o desejo das pessoas?"
"Mas não é! Eu sei que não é e farei tudo para que não seja."
"Também eu farei tudo para que possam finalmente ser seres livres na busca da verdade."
Um silêncio opressivo apossa-se de ambos. Depois com um longo olhar misto de hostilidade e resignação cada um afasta-se rumo ao seu reduto.
Naquele olhar estava decidido que o único caminho era o da luta armada.
Mesmo assim, num último acto de contrição o sonhador impôs a si mesmo que a iniciativa não partisse do seu grupo. Estariam prontos para a luta, mas não a iniciariam. Armados com as armas possíveis dispuseram-se no terreno de uma forma defensiva, com sentinelas nos pontos mais elevados e um medo incontornável dentro de cada um.
O céptico chegou com grande agitação ao Centro. Sendo quem mais desejava o confronto era, também um dos que mais o temia. Por várias razões mas principalmente por não saber o que fazer com a vitória que tinha a certeza ir ser sua. Encurralado por força dos acontecimentos era principalmente um ser encurralado dentro de si mesmo.
"Como era de esperar a minha proposta foi recusada. Assim não nos deixaram outra alternativa. Façamos-lhe a vontade. Mas que fique bem claro que fizemos todos os esforços para evitar um conflito aberto."
Tratados os últimos preparativos ficou combinado que ao amanhecer seria desencadeado um ataque de surpresa. A revolução seria esmagada sem dó nem piedade. Estripado o mal tudo voltaria à normalidade. Este era pelo menos o desejo dos que defendiam a acomodação a qualquer preço.
Aqui ali algumas escaramuças isoladas davam o tom para a grande batalha.
Conhecedores do plano do grupo do céptico os apaniguados do sonhador dividiram-se ante a atitude a tomar. Enquanto uns continuavam a defender que não deviam tomar a iniciativa, outros pensavam que também devia ser usada a surpresa. Após alguma discussão e contra a vontade expressa do sonhador foi decidido inverter o factor surpresa. Assim pela calada da noite sairam furtivamente do acampamento e foram postar-se à beira do caminho por onde passaria o grupo adversário.
A partir de determinados limites a defesa da razão não obedece a razão nenhuma porque a necessidade de se impor anula a própria razão.
Arrastados para um confronto em que ambos julgam ter a razão, ambos a perderam, porque emboscadas, golpes de surpresa, embustes e traições não são fruto de um pensamento razoável, são já o fruto irreversível da incerteza e do desnorte, estes sim, valores próprios de homem.
Ao amanhecer o grupo do céptico avança silenciosamente na direcção do inimigo. O dia começa a clarear quando, ao atingirem os limites da aldeia são avistados pelo grupo contrário. Preparam-se as armas. Muitos sustêm a respiração numa tentativa inútil de não fazerem qualquer ruído. O inimigo avança também o mais silencioso possível e aproxima-se cada vez mais. Mais uns metros e...
Sobre o que aconteceu a seguir pouco ou nada se sabe, razão pela qual, à semelhança do que quase sempre acontece, existem mil e uma explicações, cada uma mais verdadeira que a outra.
Uns dizem que o dia soalheiro ficou de repente negro como breu e que em poucos instantes se desencadeou uma tempestade terrível.
Outros que um barulho ensurdecedor atruou os ares, imoblizando todos os que, boquiabertos se imobilizaram temerosos.
Houve quem dissesse que viu claramente a figura de um rosto humano, espécie de pássaro, mas que pássaro não era.
Também houve quem visse claramente a figura de Deus, Ele mesmo, deitando chispas pelos olhos e segurando na mão direita um bastão que vomitava fogo.
Ou então quem tivesse a certeza que de o diabo se tratava e que o dito, enquanto se ria com desdém conseguia destruir tudo onde a vista fixava.…
Mas a versão mais consistente é a que diz que, saídos de lado nenhum, de repente os céus se encheram de anjos-guerreiros, feitos gémeos de mães diferentes, uns todos vestidos de branco e outros todos de preto, que, num ápice, se envolveram numa mortífera batalha aérea.
E então aconteceu uma coisa espantosa, nunca explicada até aos dias de hoje.
Logo que a batalha começou foi como se os grupos rivais em terra não passassem de marionetas que replicavam na perfeição os gestos dos anjos no céu.
Bailado estranho, tão simples como tentar voar com os pés assentes em terra ou andar ao compasso do bater das asas.
O que quer que tenha acontecido a verdade (a verdadeira) foi que, em poucos minutos tudo ficou reduzido a escombros e pó!
Depois o silêncio!
Total!
Passado algum tempo aqui e ali algo começa a mexer lentamente por entre os escombros. Aos poucos alguns corpos vão- levantando.
São os sobreviventes.
Poucos.
Estonteados juntam-se em torno de uma habitação que quase por milagre ficou intacta.
Feita a contagem sobreviveram sete pessoas e alguns animais.
Foi quando, vinda de lado nenhum, se ouviu o que pareceu uma voz, ainda que pudesse ser outra coisa qualquer, ou mesmo não ser nada.
O que quer que fosse ficou gravado para todo o sempre no mais intimo de cada um daqueles sobreviventes:
“Ide e recomeçai!”


F I M?

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Já acabaste a tua tragicomédia, ou ainda não foi desta?
Já sou avó há 3 anos e tu?
Beijos.
SG

2:53 da tarde

 

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