terça-feira, maio 24, 2011

EKTOM (2 - A Mudança de Tempo)

Existiram várias fases no processo de consolidação de Ektom, mas só existe algum conhecimento em relação à imediatamente anterior à actual.
Existem várias versões, todas diferentes, mas todas coincidentes quanto ao número de sobreviventes, sempre sete e alguns animais, o que não deixa de ser estranho.
Da fase anterior conhecem-se muitos factos e a Ruptura é, sem dúvida, o acontecimento fulcral desse período, sendo mesmo o único marco de medida do tempo que é sempre referido em termos de A.R.(Antes da Ruptura) e D.R.(Depois da Ruptura).
Foi uma fase que começou com as descobertas tecnológicas e a passagem da produção artesanal ao fabrico em série.
Como quase tudo o que é novo o inicio prometeu muito, mas cedo o sonho se transformou em pesadelo; pesadelo perverso, injusto e contraditório, porque muito depressa seguiu o caminho da auto destruição.
Num processo de autofagia incontrolável gerou o absurdo do “sempre mais”, um modelo de desenvolvimento que em nome do homem, sempre em seu nome, mais não fez que alimentar-se a si mesmo, criando à sua volta uma legião de desempregados, excluídos e marginais. Primeiro exclusão material, mas que em breve resvalou para uma exclusão mental com tendência para a inutilidade.
Era um sistema capaz de gastar fortunas colossais para salvar a última espécie de borboleta, enquanto permitia que no seu seio morressem todos os dias milhares de crianças com fome; capaz de num lugar destruir toneladas de alimentos em nome de uma ordem económica incompreensível, enquanto não muito longe (às vezes no mesmo lugar) permitia a miséria mais abjecta; capaz da abnegação mais extrema a par da insensibilidade mais atroz; capaz de em nome do homem destruir tudo à sua volta, em especial o homem, ele mesmo.
Deste processo resultaram tais distorções (alterações climatéricas bruscas, poluição, novos vírus, contestação social permanente, desastres “naturais”, etc. etc.), que viver passou a ser uma incógnita permanente.
À medida que os horizontes se iam fechando ia aumentando o descontentamento e a revolta.
Então, num momento que não é possível determinar, começou a desenvolver-se um movimento de retorno às origens, hesitante primeiro, depois cada vez mais forte, apoiado progressivamente em "distorções” cada vez mais frequentes.
Alguns factos com maior impacto contribuíram para acelerar o processo.
Primeiro foi a morte de mais de quinhentas crianças numa Instituição de Educação em consequência de uma avaria no sistema de controle de ar totalmente automatizado.
Depois o caso célebre da morte do Presidente do Tribunal Plenipotenciário, assassinado por um autómato/policia, no qual, por erro, foram introduzidos os seus dados pessoais em vez de os de um malfeitor perigoso; como não obedeceu à ordem para parar dada pelo autómato, este matou-o sem hesitação.
Designado genericamente por "Natura", foi-se desenvolvendo um movimento, oriundo dos mais variados sectores, que, no entanto, tinha um objectivo comum - alterar a ordem de valores estabelecida e recuperar para o homem a dignidade perdida.
Primeiro incipiente á medida que o tempo passava a sua tarefa era cada vez mais fácil, tal era o acumular de erros e contradições do sistema.
Ektom era então uma cidade possuidora dos mais modernos meios técnicos e de uma vida a fervilhar. Mas era, ao mesmo tempo um mundo de contradições. Três quartos da sua população não tinham qualquer actividade; morriam por dia, em média, cem pessoas com fome. Outros tantos pereciam em desastres de automóvel, avião, helicóptero ou doutra forma acidental; pelas ruas arrastava-se uma imensa mole humana, expondo a mais completa miséria, muitas vezes atropelados sem piedade pelos carros luxuosos que, cortinas fechadas e vidros fumados fechados passavam vertiginosos, mais de medo que de vergonha; os assaltos eram frequentes e violentos, sendo a terceira causa de morte; era frequente ver caídos nos passeios velhos e crianças incapazes já do esforço para se movimentarem na procura de comida, objectivo e ocupação únicos em cada dia; e o mais caricato era assistir às deambulações dos "representantes" do povo, que mais pareciam perigosos criminosos, tal a protecção policial que se concediam a si mesmos e velocidade vertiginosa com que se deslocavam.
Supõe-se que, mesmo sem a ajuda do sistema o "Natura" acabasse por impor as suas ideias, mas não foi necessário. A guerra nuclear que abalou a Terra há aproximadamente sete mil anos foi o primeiro passo em nome da actual ordem. Mesmo assim ainda foi necessário um esforço adicional da parte dos que, em Ektom conseguiram escapar, até se chegar à Ruptura.
A Ruptura foi, em si mesma, um acto simbólico.
Naquele dia toda a Aldeia parou. Ainda que a verdadeira cisão já tivesse acontecido, aquele foi o dia escolhido para enterrar o passado. E enterrar é o termo exacto, dado que foi esse o meio utilizado para apagar os últimos vestígios que restavam do passado. Na antiga parte industrial da velha cidade, foi aberta uma vala enorme e nela foram lançados todos os objectos, símbolos da civilização anterior. De seguida procedeu-se ao seu tapamento, feito exclusivamente com as mãos, num acto simbólico que pretendia apagar de vez a antiga inutilidade.
A partir da Ruptura iniciou-se um longo processo(presentemente estamos no ano 3020 D.R.) que culminou há mais ou menos mil e quinhentos anos no actual estado de desenvolvimento.