terça-feira, outubro 18, 2011

Ektom (5 - O Pregador)

Passava pouco do meio-dia.
Um calor tórrido tomava conta de todas as coisas.
Então, como que vindo do nada, uma personagem estranha, avança resoluta para o centro do aldeamento. Todo vestido de preto, com um saiote até aos pés, um enorme chapéu de abas na cabeça, naquele instante mais parece uma visão.
Os primeiros a avistá-lo ficam atónitos. Incapazes de reagir, não conseguem acreditar no que vêem; aquela criatura não existe, não pode existir. Como pode estar ali a caminhar calmamente na sua direcção?
Só passados alguns instantes, quebrada a estupefacção inicial os ektomianos começam a aceitar a realidade É um homem alto, de rosto esguio, nariz saliente e queixo saído. Mesmo tendo em conta a sua altura, os pés parecem enormes, mas os olhos, esses é que “prendem” todos os que para ele olham.
Alheio à curiosidade, avança decidido, enquanto lança olhares inquiridores para um e outro lado, como quem procura alguma coisa, como se conhecesse o local e o que procura devesse estar algures por ali.
Passada a incredulidade inicial, as pessoas vão-se aproximando e acaba por se formar um grupo que o começa a seguir. No rosto deste começa a notar-se um ar de desalento e passado mais algum tempo estaca de súbito e então a sua voz, ao mesmo tempo profunda e grave, soa como um trovão no enorme silêncio envolvente.
"Onde fica a vossa igreja?"
O espanto provocado pelas suas palavras não permite qualquer resposta imediata, ainda que ninguém soubesse responder.
Perante o silêncio volta a insistir.
"Então, onde fica a vossa igreja?"
Alguém consegue articular uma tentativa de resposta.
"Igreja?"
"Sim, igreja. Não me digam que não sabem o que isso é?"
"Não. Por acaso não sabemos. Mas...quem és tu?
O pregador não pode acreditar no que acaba de ouvir. Aqueles desgraçados não sabem o que é uma igreja.
"E Deus? Sabem quem é Deus?"
"Deus? Alguém teu conhecido?"
É demais. Agora é demais. Oh! que desgraça Santo Deus, que grande desgraça! Pobres seres indefesos, perdidos naquelas montanhas. Como é possível que ainda possam existir criaturas destas? Como? ...Mas nada está perdido...pois não foi Deus que o fez perder naquelas montanhas e ir parar àquela aldeia isolada? Claro que sim! E isso só pode ter sido feito com uma intenção - a de que ele salve aquelas almas perdidas!
Recomposto do choque inicial o pregador começa a sentir um ânimo novo. Perdido há vários dias naquelas montanhas que pareciam não ter fim, respirou fundo ao avistar o aldeamento e pensou em descansar ali um pouco antes de seguir viagem.
E então depara-se com esta situação tão espantosa, que nunca lhe havia passado pela cabeça que pudesse existir - uma aldeia inteira que desconhece por completo a existência de Deus.
É óbvio que isto altera todos os seus planos e que já não vai a lado algum.
Vai ficar ali a cumprir a missão para a qual Deus o enviou - evangelizar aquelas almas perdidas.
Entretanto a notícia espalhou-se rapidamente por todo o aldeamento e à incredulidade inicial seguiu-se a curiosidade. Todos queriam ver o fenómeno com os próprios olhos e em pouco tempo, o largo fronteiro ao Centro está repleto de gente, em torno do pregador.
Este, por seu lado, passado o choque inicial sente um contentamento interior que já não consegue esconder, porque nunca conseguiu reunir tanta gente à sua volta num espaço de tempo tão curto.
O significado de ter aparecido um estranho no aldeamento é tão profundo que ainda não foi apreendido pela maioria das pessoas. Mas a verdade é que já está tudo mudado.
Ao sonhador, por exemplo, tudo soa como algo que na verdade não é novo e que mais cedo ou mais tarde tivesse que acontecer. Misturado na multidão, aguarda como todos os outros, hesitante quanto à atitude a tomar.
É então que a voz do pregador se eleva acima dos murmúrios.
E esta é já uma voz pausada e confiante.
"Desconhecem, então, o que é uma igreja e quem é Deus?"
A resposta é o silêncio, mas o pregador continua como se na verdade não estivesse à espera de qualquer resposta.
"Mas isso é uma coisa espantosa. Em quarenta anos de apostolado nunca me tinha acontecido nada parecido."
As suas últimas palavras foram acompanhadas por risos mal contidos.
"Sim, em quarenta anos! Este jovem aqui, por exemplo. Sim, você? Quantos anos tem?"
"Cento e dez!"
"Ah! Ah! Ah! Boa piada! Cento e dez anos! Pois meu amigo se você tem cento e dez anos, eu tenho cento e sessenta!"
"Também eu!"
"E eu!"
"E eu!"
Ao princípio o pregador pensa tratar-se de alguma brincadeira, mas depois, ao olhar com atenção para os rostos que o rodeiam, apercebe-se que não é assim.
Aquelas pessoas não estão a brincar.
"Então, então, calma amigos. Não me digam...bem, parece que é mesmo verdade. Mas, afinal que aldeia é esta? Quem são vocês? Quem é o vosso chefe?"
A multidão entreolha-se interrogativa.
"Não me digam que não existe um chefe?"
"Bem...chefe...!"
"Sim! Quem é que manda aqui?"
"Mandar o quê?"
"Ora, mandar! Quem vos diz o que deveis ou não fazer em cada dia?"
"Nós sabemos o que devemos fazer. Não é preciso que alguém nos diga o que devemos fazer."
"Mas isso é um absurdo. Vocês não podem viver assim. Um chefe é tão necessário como..."
"Um momento!"
O céptico destaca-se da multidão e avança em direcção ao pregador.
"Não estamos a entender nada do que estás para aí a dizer, mas isso também pouco importa. Afinal quem és tu?"
"Quem sou eu? Mas isso é evidente! Sou um mensageiro de Deus!"
"Um mensageiro de quem?"
"De Deus! Do Criador do céu e da terra e de tudo o que existe. De Deus Nosso Senhor que está no céu!"
"Calma, calma. Explica lá isso mais devagar. Onde é que fica o céu e quem é que está no céu?"
O pregador leva a mão à cabeça ante tanta ignorância. Há tanta coisa para dizer que nem sabe exactamente como começar.
"Esperem aí. Eu explico tudo, mas vamos por partes. Em primeiro lugar, onde fica o vosso local de culto?"
"Local de culto? O que é isso?"
"Oh! Não! Não me digam que não têm nenhuma religião?"
"Religião?"
Pela primeira vez na sua vida o pregador sente-se desorientado e mesmo com algum medo de, por circunstâncias demasiado adversas, não ser capaz de cumprir a sua missão.
Desde que se lembra de si, a sua vida foi passada a espalhar a palavra de Deus pelos cantos do mundo e quanto menos essa palavra era conhecida, mais força sentia e maior era a sensação de ter cumprido a sua missão. Agora, porém, havia ali algo de diferente. Toda a curiosidade daquelas pessoas se parecia concentrar na sua pessoa e pareciam realmente pessoas satisfeitas consigo mesmas, sem qualquer tipo de necessidades.
"Religião, sim! Quem são os deuses que vocês veneram?"
"Continuo a não entender. Tenta lá explicar melhor. Afinal quem és tu e o que significa toda essa conversa esquisita?"
"Eu sou um pregador, um homem que se dedica a espalhar, a dar a conhecer a palavra de Deus!"
"Sim, isso já ouvimos! Mas quem é esse deus?"
"Deus é o Criador! O Criador do céu, da terra e de todas as coisas que existem!"
"Mas como nos pode ter criado se nem sabemos que existe?"
"Vocês não sabem que Ele existe, mas Ele sabe que vocês existem e isso é que importa. Nunca pensaram que no princípio de todas as coisas é necessário que exista alguma coisa? Como explicar o princípio das coisas? Só Deus pode ser o princípio de todas as coisas!"
À medida que fala o pregador vai-se encontrando. Ao falar de Deus é como se aos poucos deixasse de ser ele próprio e Deus começasse a falar através de si; sempre sentiu essa força interior, alimento da sua fé e certeza da existência de Deus.
As palavras começam a tornar-se fáceis e tudo a desenhar-se com nitidez no seu espírito; com nitidez e sem dúvidas.
"Como é possível viver-se sem fé, sem a dádiva de Deus? Não, isso não é possível!! Só em Deus o homem pode encontrar a justificação para a sua existência e a felicidade. Só tendo a certeza que no fim do caminho Deus o aguarda de braços abertos para a partilha da vida eterna é que o homem consegue enfrentar a caminhada terrena sem desfalecimentos. E só acatando os seus ensinamentos se pode ter a certeza de conquistar a felicidade eterna. Se o fim não for a salvação da alma, que justificação para a nossa existência? Que significado tem a vida se no fim não existir nada?"
Perdido no meio da multidão está o Sonhador que à medida que vai ouvindo o pregador se sente invadido por um calor estranho, como se toda a sua vida tivesse sido uma longa espera para ouvir o que o que lhe dizem neste momento; como se tivesse sabido sempre que mais cedo ou mais tarde descobriria a outra realidade dentro de si. Deus! D E U S!!?
Inflamado o pregador prossegue.
“Deus criou o homem para que este pudesse por si mesmo descobrir o caminho da gloria e da eternidade. É evidente que se Deus quisesse teria criado um homem perfeito, mas isso seria um absurdo, uma limitação imposta ao homem no próprio acto da sua criação. Por isso Deus preferiu criar um homem que pudesse ser aquilo que desejasse tanto para o bem como para o mal. Para o mal espera-o o mundo dos abismos, para o bem a graça eterna e a paz do paraíso.”
“Tretas! Como podes saber isso? Quando foi a última vez que estiveste com Deus?”
“Eu? Mas eu nunca estive com Deus!”
“O quê? Nunca estiveste com Deus? Como podes saber todas essas coisas? Como podes saber o que espera os bons e os maus depois da morte? Tudo isto me parece uma grande aldrabice.”
Murmúrios de assentamento acompanharam as últimas palavras do céptico que tacitamente estava a ser o porta- voz de todos os que desde o inicio hostilizaram o pregador.
Existiam outros para quem as coisas eram diferentes.
O pregador tentava fazer entender-se para além da evidência.
“Mas eu não preciso de falar com Deus! Eu sei! Eu tenho fé e sei! Ter fé! A fé é o primeiro passo a caminho da salvação. Há coisas que se sentem dentro de nós de uma maneira tão intensa que não é preciso ver para crer. Isso é ter fé!”
“Com isso concordo. Há coisas que sentimos dentro de nós de uma maneira tão intensa que basta senti-las para saber que existem!”
O espanto foi geral.
Todos se voltaram para o ponto de onde saiu a voz.
O sonhador só se apercebeu do que disse quando acabou de falar e viu todos os rostos voltados para si. Mas quando ouviu o pregador dizer de uma maneira tão clara o que ele mesmo sentia, não resistiu.
O céptico foi o primeiro a reagir.
“Mas o que é que tu queres dizer com isso?”
Talvez porque sentisse que já nada tinha a perder, talvez porque se sentiu espicaçado pela reacção do amigo, o sonhador perdeu todo o receio.
“Quero dizer que sei o que o homem está a dizer. Também já senti dentro de mim essa força que nos envolve e arrasta; também já senti essa crença, ainda que na altura não soubesse do que se tratava. Inclusivamente cheguei a falar contigo, não te lembras?”
“Lembro-me de, em tempos, teres falado comigo sobre necessidades e coisas do género, mas continuo a dizer-te o que te disse na altura - tudo isso são fantasias do teu espírito.”
“Achas que sim? E isto?...”
E o sonhador aponta significativamente para o pregador.
“...não entendes que tudo está alterado? Até há pouco tempo o mundo reduzia-se à nossa aldeia e de repente descobrimos que isso não só não é verdade como existem outros valores que nos transcendem.”
“Pois eu penso que não. Reconheço que há um elemento novo - existe vida para além da nossa aldeia - mas esse é o único dado novo, o resto são especulações sem sentido.”
“Isso é o que tu dizes, porque sempre tiveste medo de poder acontecer alguma coisa que te obrigasse a pensar, a ter de encarar a vida de modo diferente.”
“Medo eu? Tu é que revelas tanto medo que tens de te esconder à sombra de forças ocultas.”
O pregador escutava atento estas opiniões contraditórias, que, como é óbvio, lhe agradavam.
“Então parece que já alguém nesta aldeia tinha pressentido a verdade. O que não me admira. Estranho é como puderam sobreviver todo este tempo. O homem existe por vontade de Deus e sem ele não é nada. Sem Ele não passa de um animal irremediavelmente condenado.”
“Tretas! Irremediavelmente condenado a quê?”
“A quê? À fome, ao sofrimento, à miséria e a todos os males que o afligem e que só em Deus podem ser solucionados.”
“E se eu lhe disser que em Ektom não existe fome, nem miséria, nem sofrimento de qualquer espécie?”
O pregador não esperava uma declaração tão radical, mas percebeu de imediato que aquelas palavras correspondiam à realidade.
“Então...”
É o sonhador que salva a situação.
“O que dizes é verdade num sentido puramente material, mas não podes falar por todos. Ou acreditas que todos pensam como tu?”
“Mas isto não é uma questão de pensar, é uma questão de factos e esses estão à vista de toda a gente.”
“Acontece que a necessidade não tem que ser material, pode ser algo interior, dentro de nós, uma ansiedade de qualquer coisa mesmo que não se saiba bem o quê. Isso também pode ser uma necessidade.”
Agradecendo a Deus a ajuda recebida o pregador não precisou ouvir mais nada.
“Exactamente. O vosso amigo tem toda a razão. E as necessidades mais importantes são as que sentimos dentro de nós. Como a necessidade de Deus por exemplo. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, sabendo que mais cedo ou mais tarde o homem voltará a Si. E quando isso acontecer o homem será finalmente conduzido ao paraíso da vida eterna.”
“Mas quem é que quer o paraíso? Quem é que quer a vida eterna? Nós só vivemos duzentos e setenta e três anos e estamos mais que satisfeitos. Não desejamos viver mais tempo. Para quê? Pergunta aí se alguém quer viver mais tempo?”
A expressão nos rostos que o rodeiam é eloquente.
“Mas isso só acontece porque vocês não têm nenhum objectivo, não esperam nada para além da morte.”
“E não queremos mesmo. A não ser paz. E essa temo-la de certeza , com ou sem o teu Deus.”
“Mas vocês não estão a entender. A questão não se põe entre um mundo sem Deus e outro com Ele. Não existem dois caminhos. Quando Deus criou o homem, deixou-lhe abertas todas as possibilidades, mas só uma via para a salvação - a que leva a Deus, à salvação e à vida eterna.”
“Continuo a não entender porque é que alguém pode desejar a eternidade. Tanto tempo para quê?”
“Não é tão simples como isso!”
Uma vez mais é o sonhador quem acorre.
“Não me parece que possas pôr o problema dessa maneira tão simples. O que conta é o interior de cada um, os seus anseios, as suas necessidades mais íntimas.”
A partir deste momento os dados estão lançados. Para além mesmo da estupefacção causada com a sua presença o pregador conseguiu num espaço de tempo diminuto causar já mais discussões que as que aconteceram nos últimos cem anos. E está agora mais que convencido que foi uma vez mais bafejado pela sorte.
Por um puro acaso veio parar a este sitio ermo e descobre agora que é um campo vasto e virgem para a sua acção. Porque cada vez tem menos dúvidas que aquelas almas estão carentes de Deus. Basta que alguém os faça perceber isso e sabe bem que foi Deus que o fez perder naquelas montanhas isoladas com esse propósito.
Por enquanto o efeito das suas palavras é ainda muito controverso, senão mesmo contraditório.
Para uns nada daquilo faz sentido e a única coisa importante é saber quem ele é. É um grupo naturalmente encabeçado pelo céptico que sem saber bem como se descobriu porta-voz da dúvida e da relutância.
Para outros o pregador é a materialização de sonhos e anseios secretos que sempre temeram tornar públicos. É constituído por todos os que alguma vez pressentiram que podia existir mais alguma coisa para além da sua vida perfeita, mas monótona e foi espontaneamente liderado pelo sonhador.
Sem terem chegado a qualquer conclusão e muito menos a um acordo, foi decidido que o facto extraordinário da chegada de alguém ao aldeamento merecia ser tratado com a devida importância. Assim foi marcada uma reunião no Centro, onde estariam presentes todos os membros do Conselho e onde seria tomada uma decisão sobre a atitude mais correcta a tomar.
O céptico sorriu interiormente com a ideia. Sendo um dos elementos mais velhos do Conselho contava com a sua influência para tomar a única medida razoável - esclarecer a origem do pregador e expulsá-lo para que a calma e paz voltassem a Ektom.
Ao abandonarem o largo os aldeãos dividiram-se instintivamente em dois grupos, um que seguiu na peugada do céptico e outro do sonhador.
A verdade é que nos últimos minutos tudo mudara em Ektom. Todos tinham sido definitivamente abalados e numa coisa o pregador tinha razão - apesar da sua elevada inteligência aqueles espíritos, adormecidos na sua perfeição, estavam num total estado de pureza e eram um campo virgem à espera de ser desbravado.
Para o bem ou para o mal os dados estavam lançados. A perfeição de Ektom foi abalada e nalguns espíritos começou a pairar a ideia de não ser tão perfeita. Ou será exactamente por isso? È verdade que quem tudo tem nada deseja, mas quem tudo tem continua a viver? Não terá Deus tanta necessidade do homem, como este de Deus, sob pena de perecerem ambos? Quem criou quem nesta eterna imperfeição, filha cíclica da utopia da perfeição?
Ektom saltou da nossa imaginação e emergiu como um marco definitivo do eterno descontentamento que guia o homem na sua busca do absurdo da perfeição.