quinta-feira, junho 16, 2005

O TRATADO E O POVO

“Então, já sabes o resultado?”
O tom denotava ansiedade e uma profunda preocupação.
“Já! Disseram NÃO!”
“NÃO?!?Mas como? Isso é impossível!”
“È verdade. O povo votou não!”
“Mas como é que nos podem fazer uma coisa destas? Não entendem o bem que queremos para eles? Não respeitam os sacrificios que fazemos todos os dias, longe das nossas familias, desterrados nestas cidades longínquas com o único propósito de os servir e proporcionar uma vida melhor?”
“Assim parece!”
“Então e agora? O que é que fazemos?”
“E o pior é que pelo que parece a onda tem tendência a aumentar e muitos mais se preparam para dizer não.”
“E o que é que fazemos?”
“Penso que o melhor é suspendermos a consulta por uns tempos. Fingimos que isto não tem importância nenhuma, que a vida continua, enfim, o costume e esperamos uma oportunidade em que estejam distraidos com outras coisas e quando tivermos a certeza que não vão dizer não voltamos a colocar a questão.”
“Parece-me um bom plano. Mas ... e se não se distraírem? E se não voltarmos a ter a certeza que o povo não diz não?”
Nesse caso ainda é mais fácil – muda-se o povo!”

terça-feira, junho 14, 2005

Eugénio de Andrade...sempre

Os Olhos Rasos de Água

Cansado de ser homem o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como um bosque.

É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,
como um marinheiro num barco naufragado,
o vento na margem das espigas.

sexta-feira, junho 03, 2005

A Sinistralidade Rodoviária, o Défice, o Teatro e Outras Coisas Aparentemente Desencontradas

Numa acção de sensibilização recente sobre prevenção rodoviária (leia-se excesso de velocidade/acidentes) o Presidente da Republica fez A PERGUNTA: “se não é permitido andar a mais de 120 km/hora porque se continuam a construir carros que andam a 300 km/hora?
O défice é em si mesmo um conceito estranho, tornado “obtuso” por um modelo de desenvolvimento que não admite regressões, nem mesmo de palavras (não inventaram uma coisa chamada “crescimento negativo”?).
O problema é que vivemos um modelo de desenvolvimento em que só mesmo nas palavras é que não há regressões.
Em democracia o teatro é fundamental, porque a democracia se alimenta de alternância e de promessas, duas excêntricidades que teimamos em manter.
A alternância não permite que se atirem pedras (podem cair em cima da própria cabeça).
As promessas só fazem sentido se forem de dar, mas, neste momento, o dar está esgotado.
Dito de outro modo, é necessário dizer que o crescimento se mantém, com um pequeno senão, passou a ser negativo.
E convenhamos que para dizer tirar de forma a que quem ouve entenda dar é precisa não só muita arte (de representar), mas também muita, muita magia.
E o que é que estas coisas têm que ver umas com as outras?
Tão só que, apesar de fingirmos o dominio, talvez já não passemos de actores passivos de uma peça com vida própria.