quinta-feira, julho 14, 2011

Ektom (3 - A Anulação)

A Anulação é só o fim.
O nascimento foi decidido pelo Conselho.
Ser agricultor foi decidido pelo Conselho.
A Anulação foi decidida à nascença pelo Conselho.
Tudo afinal tão simples!
Quando é necessário ocupar um lugar, para suprir uma Anulação ou como consequência de alguma rara alteração, o Conselho decide se será um homem ou uma mulher, escolhe a mãe e dos bancos de sémen existentes é retirado o necessário para fertilizar a mulher escolhida.
Logo que nasce a criança é entregue aos cuidados do Conselho que trata de toda a sua educação e da integração na sociedades. Ser filho de uma ou de outra mãe é uma mera circunstância.
A educação visa em exclusivo a aprendizagem da tarefa que lhe foi destinada e a inculcação definitiva dos valores da igualdade, da liberdade e da Cidadania.
O espírito de competição é ostracizado e considerado uma aberração, desde o primeiro momento.
Num dia normal (e em Ektom os dias são todos normais), os temas de conversa resumem-se a meia dúzia de assuntos menores, pela razão simples que nada há para dizer.
Todos sabemos como as agruras da vida são ainda a maior fonte de conversa e as necessidades materiais um dos seus pólos aglutinadores, por isso, aqui onde nada falta, mesmo o amor, quando existe, existe por si mesmo sem necessidade de rótulos ou justificações.
Agora ao preparar as despedidas é ainda a neutralidade o sentimento dominante.
Durante o tempo em que desenvolveu a sua actividade de agricultor foi sempre eficiente e meticuloso e isso não requereu qualquer esforço suplementar, porque fazer sempre tudo o melhor possível é um acto natural. E é por isso que quando a Despedida acontecer será uma vez mais um acto perfeito e natural.
A Despedida é o único acto colectivo a que se pode atribuir algum carácter simbólico.
À Despedida assistem os habitantes da aldeia que entendam fazê-lo e o evento principal ocorre no Centro de Aldeia.
Quando chegou já lá se encontravam todos os outros elementos do Conselho que o receberam com naturalidade e sem quaisquer manifestações de pesar. Porque a Despedida não era uma manifestação de tristeza, não era sequer uma manifestação; as pessoas reúnem-se, conversam, bebem alguma coisa e pouco mais.
O que se vai anular está sozinho.
Ao fim de um ciclo de vida não fica ninguém em especial, nem mesmo os filhos que, apesar de tudo procura por entre o aglomerado de pessoas. Acaba por descobri-los em conversa animada com outras pessoas.
" Então! Tudo preparado?"
" Claro! Há já muito tempo! Estava a ver se vos encontrava; há lá em casa alguns objectos que gostava que ficassem para vocês. Passem lá antes do pessoal do Centro ir fazer a limpeza." Abraçam-se e despedem-se.
Estão feitas as despedidas. Ponto final.
As conversas momentaneamente interrompidas recomeçam no mesmo tom.
Mais além alguns amigos dos jogos no Centro.
Algumas pessoas menos conhecidas e ao fundo a companheira de muitos anos. Já não vive com ela há mais de sessenta anos, mas continua na mesma.
" Olá! Há muito tempo que não te via."
" É verdade, mas não podia deixar de vir despedir-me. Preparado?"
" Claro! Já disse aos rapazes para passarem lá por casa. Se quiseres ir com eles..."
Não consegue evitar a memória dos primeiros tempos.
Tempos em que chegou mesmo a desejar aquela mulher.
O desejo e a vontade são os elementos catalisadores da cadeia de sentimentos que tudo movem, quando o homem busca alguma coisa, seja a felicidade terrena, o simples bem estar ou a paz. Em Ektom ninguém procura a felicidade, o bem estar ou a paz eterna. Por isso é aberrante sentir desejo, ou, simplesmente sentir. Por isso também, nunca lhe passou pela cabeça dizer a quem quer que fosse que em tempos o desejo esteve dentro de si e muito menos ao objecto desse desejo.
Quando já se tinha afastado um pouco voltou para trás e segredou-lhe ao ouvido "sabes que em tempos cheguei a sentir desejo de ti?”. Enquanto ele se afasta ela olha-o entre surpreendida e atónita sem perceber muito bem o que lhe terá querido dizer.
Continua a deambulação pela sala, despedindo-se de uns, cumprimentando simplesmente outros. Todos aguardam o momento solene da despedida, mas sem pressas; é o próprio que escolhe livremente o momento.
Passado algum tempo, calma mas resolutamente, dirige-se a um pequeno púlpito, colocado num dos topos da sala. É costume dizer algumas palavras e não quer fugir à tradição.
Em cima da pequena bancada um copo de água (o último copo de água), aguarda que lhe seja adicionado o comprimido que o eliminará. Depois das despedidas, ingerirá o conteúdo do copo, dirigir-se-á para uma pequena sala existente ao fundo do salão, onde se deitará para o último sono. No dia seguinte o corpo será incinerado e as cinzas lançadas ao acaso sobre o vale.
" Amigos, quero agradecer a todos a vossa presença. Ao longo de todos os anos a minha felicidade não podia ter sido maior. É por isso ainda em felicidade que me despeço de todos vós. Até sempre!!"
" Até sempre! " responderam todos num uníssono.
Depois, inpávido e sereno, deitou o comprimido no copo, esperou que se dissolvesse e bebeu o conteúdo de um trago. Lançou um derradeiro olhar pela sala e encaminhou-se para a Sala do Ultimo Sono.
Ficou completado o ciclo de vida e morte de um cidadão em Ektom.