sexta-feira, janeiro 20, 2012

Ektom (7) - Sobre a Intolerância

Enquanto abandonava a praça onde se tinha encontrado com o pregador o céptico sentia nascer dentro de si um sentimento surdo de raiva. Como era possível que alguém lhe viesse dizer o que devia ou não fazer? E o que era bom ou mau? Mas o pior era existirem pessoas que aceitavam isso. Não toleraria isso de modo algum.
“Mas o que pretende o homenzinho? Já não bastava ter vindo alterar toda a nossa calma, ainda nos pretende impor ideias absurdas. Deus? Salvação? Mas salvação de quê? Para quê? E depois aqueles traidores a apoiá-lo, a negar a nossa perfeição. Mas isto não fica assim. Não permitirei que um... um... o que é que ele disse que era?... um pregador qualquer venha alterar a nossa calma, a nossa harmonia, seja o que for que ele pretende.”
Na sua cabeça começa a desenhar-se um plano para se ver livre do pregador. É verdade que é a primeira vez que em Ektom não estão todos de acordo sobre alguma coisa, mas isso se for bem aproveitado pode transformar-se num trunfo. Para já é necessário tomar algumas providências.
O céptico decide visitar alguns membros do Conselho com quem sabe poder contar para o apoiarem.
“Então já sabes a novidade? Estiveste na praça?”
“Não estive, mas já sei. Haverá alguém que não saiba? É uma coisa espantosa, não é verdade? Eu que sempre acreditei... ainda não estou refeito do choque.”
“É verdade. Mas já pensaste bem em tudo isto? Já viste o que isto pode representar?”
“Bem, na verdade ainda não tive muito tempo para pensar. Foi tudo tão rápido, tão inesperado... mas... estás com um ar tão preocupado porquê? Não me parece que seja caso para isso.”
“È caso para isso e muito mais. Pois não vês as alterações que isto pode provocar? Não te esqueças que toda a nossa organização assenta no pressuposto de que toda a vida existente é a vida em Ektom. E a nossa é sem dúvida a melhor de todas as vidas e qualquer alteração será sempre para pior. E o que é que este pregador nos trás? Primeiro a confirmação que existe outra vida e quanto a isso já nada podemos fazer, depois vem cheio de ideias estranhas sobre o que devemos ou não fazer, sobre o que está bem e está mal. É evidente que sabemos bem as respostas a tudo isto e não precisamos que um estranho nos venha dizer o que fazer.”
“É possível que tenhas razão.”
“Possível? É claro que tenho razão. Se o pregador conseguir que alguém aceite as suas ideias toda a nossa sociedade se desmoronará como um castelo de areia. E o pior é que parece existirem alguns dispostos a aceitá-lo, por isso é necessário tomar uma atitude o mais rápido possível.”
“E que propões, então?”
“Já deves saber que ficou combinada uma reunião esta noite no Centro para tentar esclarecer a situação e decidir a atitude a tomar. O que proponho é tão simples como isto: temos de eliminar o mal pela raiz, é preciso que o dia de hoje seja esquecido e que o pregador desapareça. Temos de convencê-lo a abandonar Ektom, ainda hoje se possível.”
“E se ele não concordar?”
“Então teremos de encarar a hipótese de tomar medidas mais drásticas.”
“E então que pretendes de mim?”
“Logo à noite vou defender o meu ponto de vista. Sei que existem alguns que não pensam como nós, por isso, vou precisar de todo o apoio possível. Para isso o teu apoio é muito importante. Posso contar contigo?”
“Mas, claro. Saber que podes contar comigo em qualquer circunstância.”
“Então até logo.”
“Até logo.”
Satisfeito consigo mesmo o céptico afasta-se e decide fazer mais algumas visitas. Depois de falar com mais nove pessoas que sabe arrastarão muitos outros consigo, pensa que de momento nada mais pode fazer.
Agora é tempo de amadurecer a estratégia para a reunião. Então surge-lhe uma nova ideia. Porque não visitar o amigo? Durante o encontro na praça foi evidente a separação entre ambos, mas isso não impede que não se possam vir a entender e que não o consiga arrastar para o seu lado. Até porque sabe muito bem que está dentro da razão.
“Então como vão as coisas? Vim aqui para falar contigo e o melhor é ir directamente ao assunto. Sabes bem que sempre fomos amigos e gostava que assim continuasse a ser. Mas aquela tua intervenção em defesa do pregador...”
“Por favor. Não comeces já a criticar uma coisa que tu mesmo disseste que não entendias. Não podes recusar uma coisa que não conheces, que és incapaz de sentir.”
“Ora, não me venhas outra vez com essas tretas. Há muito tempo quando tivemos uma conversa parecida tu mesmo reconheceste que tudo não passava de uma patetice. Não me digas que agora, só porque apareceu este homem as coisas mudaram?”
“Mas é claro que sim. Tens alguma dúvida em relação a isso? Mudaram e de que maneira! Não entendes que a partir de hoje já nada pode ser como dantes? Só o facto de existir uma pessoa estranha ao aldeamento obriga-nos a rever todas as nossas ideias.”
“E tu não vês que isso não é possível? Ao fim de tanto tempo que pretendes que façamos? Depois de tudo o que conseguimos, de toda a paz, calma, segurança, pretendes recomeçar? Para quê? Para procurar aquilo que já tens?”
“Mas não entendes que isso não é possível? Não podes dizer a um homem que ele pode voar e depois proibi-lo de tentar. Não mais será possível controlar as pessoas, não podes impedir que elas pensem. Só pela força conseguirás que se calem e nunca que não pensem.”
“Ainda não tinha pensado nisso, mas se for necessário...”
“Mas tu estás louco? Afinal o que é que se passa contigo? O que é que se passa verdadeiramente contigo?”
O céptico fica em silêncio por largos momentos depois fita-o de uma maneira estranha.
“A verdade é que não sei exactamente. Sinto uma angústia que não devia existir e que não consigo explicar. E o pior é que me sinto incapaz de acompanhar os acontecimentos. E tenho medo. Quando vi aproximar-se da aldeia aquela figura enorme foi como se a meus pés se tivesse aberto um enorme buraco por onde se esvaiu todo o meu sangue. E percebi que precisava aniquilar aquele homem e isso transtornou-me ainda mais. Depois quando entendi que havia pessoas dispostas a entendê-lo isso perturbou-me ainda mais porque percebi que a luta teria de ser também com essas pessoas. E não penses que é cobardia, medo de ver posta em causa toda a nossa vida. Não. Acima de tudo é uma convicção muito íntima, muito forte, de que se não destruirmos aquele homem, ele acabará por destruir-nos.”
“Mas isso é um absurdo. As pessoas é que se destroem a elas mesmas.”
“Acredita no que te digo. Se não tomarmos medidas imediatas vamos acabar mal. Tenho a certeza e farei tudo o que puder para que isso não aconteça. Tudo!”
Pela expressão do seu rosto o sonhador percebe o desespero e sente que aquele tudo é muito mais que uma força de expressão. Mas, porquê?
A acomodação é algo difícil de evitar. Às vezes é um escape, outras um acto inconsciente, a maior parte das vezes simples aniquilação. A incapacidade e o medo conduzem por vezes a caminhos ínvios de onde é cada vez mais difícil de sair à medida que o tempo passa e quanto mais passar maior será a intolerância face à mudança. Em Ektom já passaram milhares de anos.
Em nome da paz e da calma o céptico abafou ao longo do tempo todos os anseios e sentires diferentes. Quando descobriu que podia saltar preferiu cortar as pernas, como lhe podem agora vir dizer que é obrigado a saltar? Não tem medo de trabalhar. Nunca teve nem que tenha de recomeçar mil vezes o mesmo trabalho, mas a simples hipótese de recomeçar interiormente aterroriza-o.
O silêncio mantém-se entre ambos, cada um tentando a ponte de união. Passado algum tempo o céptico olhou o amigo bem nos olhos e, quase numa súplica, repetiu:
“Mas tu não entendes? Não me entendes?”
“Parece-me que começo a entender e tenho pena. Quando alguém chega a uma solução que não admite qualquer alternativa algo de muito grave se passa. E aí é exactamente onde te encontras. Até há pouco tempo não entendia muito bem essa tua radicalização de posições face ao pregador, mas há pouco quando estavas a falar, de repente, percebi tudo. Medo. É tudo uma questão de medo. Medo de ti mesmo. Medo de descobrir que tudo aquilo em que acreditas é falso ou simplesmente não existe.”
O céptico fica por momentos pensativo, comprometido como uma pessoa apanhada a roubar quando tinha a certeza que ninguém o estava a ver. Mas só por breves instantes. Logo de seguida recompôs-se e começou a rir-se num riso forçado e descontrolado.
“Bonito, sem dúvida. Muito engraçado. Mas que imaginação que tu tens. Pois não vês que é precisamente o contrário? Vocês é que têm medo. Senão que outra explicação para a vossa submissão? Como explicas que quase de imediato tenhas aceite e entendido todas as suas ideias? Sim, como explicas isso?... A não ser que a explicação seja outra. Aquelas tuas conversas estranhas... é isso... tudo isto foi planeado e vocês sabiam muito bem que o pregador ia aparecer. Aliás ele veio quando vocês lhe disseram que podia vir. Isto afinal não passa de uma conspiração, uma trama torpe para minar toda a nossa sociedade. Aquelas tuas conversas... bem me parecia impossível que alguém em Ektom pudesse pensar como tu, mas nunca me passou pela cabeça que pudesses estar em contacto secreto com alguém de fora!”
O sonhador começou a ouvi-lo com um sorriso nos lábios, mas esse sorriso foi morrendo à medida que o seu interlocutor falava. O que parecia uma brincadeira de mau gosto era mais grave à medida que era evidente que o céptico acreditava no que dizia. Mas seria possível?
“Mas tu estás louco? Como podes afirmar uma coisa dessas? Como podes acreditar no que estás a dizer? Nunca nas minhas conversas me passou pela cabeça que isto pudesse acontecer. A sua presença vem dar força ao que eu pensava, mas nada mais e tu sabes isso muito bem. Até porque se assim fosse sou suficientemente esperto para preparar as coisas de modo o poder controlá-las o que, como é óbvio, não está a acontecer. É muito grave o que estás a afirmar, por isso ou provas o que estás a dizer ou retiras imediatamente o que disseste.”
As últimas palavras foram pronunciadas quase sem fôlego, tal a veemência das mesmas. Eram uma manifestação de repulsa, mas não só. Era a certeza que a partir daquele instante o confronto era inevitável.
“A mim parece-me o contrário. Tu é que tens de provar que a ligação não existe, que não foi tudo preparado. Tu que entendes tudo tão bem ‘e que terás de explicar. Depois de dizer ao Conselho tudo o que penso todos irão concordar comigo e depois veremos.”
Não admito que continues a insultar-me com as tuas insinuações torpes. E quanto ao resto não te preocupes que sei defender-me. Agora desaparece antes que perca por completo a paciência. Se fosse pensava muito bem se não terás algum problema grave a afectar-te.”
No ar fica a ideia que os dados estão irremediavelmente lançados e isto é o inicio de uma nova era em Ektom. Mesmo que materialmente nada se tenha modificado, emocionalmente tudo se modificou da pior maneira possível, uns para um lado e outros para o lado oposto. Instaladas a dúvida, a desconfiança, a crença/descrença cada um sente a necessidade de radicalizar as posições, de provar que ele é que está correcto. Nuns casos a insegurança já existia de forma latente, consequência de necessidades inconfessadas e perigosamente avolumadas no interior de cada um. Noutros brotou naturalmente naqueles que sentem os alicerces perigar.
Assumida a insegurança estão criadas as condições para a tentativa sempre renovada de domínio de uns homens pelos outros.
Assumida a incerteza Ektom volta a estar viva.